Ciro Férrer

Neurourbanismo integrado ao turismo acessível

Categorias: Neurourbanismo

Neurourbanismo integrado ao turismo acessível:  um olhar 360° para a inclusão e a dignidade de todas as idades, por Ciro Férrer Herbster Albuquerque

Atualmente, cerca de 56% da população mundial vive em áreas urbanas, e as projeções indicam que esse número deve chegar a 68% até 2050, segundo dados do Relatório Mundial das Cidades 2022, elaborado pela Organização das Nações Unidas (ONU). Essa intensificação da urbanização representa uma transformação significativa na forma como os seres humanos habitam o planeta, especialmente em países de renda média e baixa, onde esse crescimento ocorre de forma acelerada e muitas vezes desordenada. Nesse contexto, a vida urbana assume um papel central no debate sobre bem-estar, desenvolvimento sustentável e saúde pública.

Entre os aspectos positivos da vida nas cidades, destaca-se o acesso ampliado a serviços de saúde, educação, transporte público, cultura e lazer. Ambientes urbanos oferecem maiores oportunidades econômicas, com concentração de empregos, redes de empreendedorismo e inovação tecnológica. A diversidade social e cultural é outra característica marcante dos centros urbanos, favorecendo a troca de experiências e o florescimento da criatividade. Além disso, a densidade populacional permite uma maior eficiência no uso de recursos e infraestrutura, promovendo soluções de escala em áreas como mobilidade, coleta de resíduos e abastecimento energético.

Contudo, os desafios da urbanização são igualmente significativos. Cidades mal planejadas intensificam problemas como poluição ambiental, congestionamentos, desigualdade socioespacial e deficiência de moradia digna, além de provocarem estresse, ansiedade e outros transtornos mentais. Estudos demonstram que viver em ambientes urbanos densos e hostis pode aumentar a incidência de depressão, esquizofrenia e doenças cardiovasculares, sobretudo em contextos marcados por ruído excessivo, falta de áreas verdes, insegurança e exclusão social. A precariedade habitacional, a especulação imobiliária e os processos de gentrificação agravam essas vulnerabilidades, sobretudo entre populações migrantes e de baixa renda.

O Neurourbanismo apresenta-se como um campo interdisciplinar emergente que investiga as relações complexas entre o ambiente urbano construído e o funcionamento do cérebro humano, com foco nos impactos cognitivos, emocionais, comportamentais e fisiológicos da vida nas cidades. Ele articula conhecimentos das neurociências, da psicologia ambiental, da arquitetura, do urbanismo, da sociologia urbana e da saúde pública, propondo uma compreensão integrada sobre como os espaços urbanos afetam a saúde mental e o bem-estar das pessoas.

Já o Turismo Acessível refere-se ao conjunto de serviços, infraestruturas, atividades e produtos turísticos concebidos para garantir a acessibilidade, segurança, conforto e autonomia de todas as pessoas, independentemente de suas habilidades físicas, sensoriais, cognitivas ou idade. Seu foco está na eliminação de barreiras físicas, comunicacionais, atitudinais e organizacionais que possam limitar a participação plena de pessoas com deficiência, mobilidade reduzida, idosos, gestantes, crianças ou qualquer indivíduo com necessidades específicas.

Além de atender demandas de inclusão social e direitos humanos, o Turismo Acessível promove experiências equitativas e qualidade de vida, contribuindo para o fortalecimento de uma cadeia turística mais justa e sustentável. Também impulsiona a economia ao ampliar o público-alvo, atender cuidadores e famílias, e tornar destinos turísticos mais atrativos a uma população cada vez mais envelhecida.

 

Princípios fundamentais do Turismo Acessível:

• Universalidade: acessível para todas as pessoas.

• Desenho universal (Design for All): espaços, produtos e serviços pensados desde o início para serem acessíveis a todos, sem necessidade de adaptações posteriores.

• Autonomia e independência: garantir que o turista possa usufruir do destino de forma independente, sempre que possível.

• Segurança: ambientes e serviços que minimizem riscos e respeitem limites dos usuários.

• Inclusão e equidade: considerar a diversidade humana em todas as etapas do planejamento e operação turística.

 

Norma internacional que rege o Turismo Acessível:

A principal referência normativa internacional sobre o tema é a: “ISO 21902:2021 – Turismo e serviços relacionados — Turismo acessível para todos — Requisitos e recomendações”. Publicada pela International Organization for Standardization (ISO), essa norma fornece um marco internacional padronizado que orienta a implementação do turismo acessível em todos os elos da cadeia produtiva do setor, incluindo:

• Atores públicos e privados (governos, operadores turísticos, hotelaria, atrações culturais e naturais, transportes, entre outros).

• Serviços de apoio e comunicação (informações acessíveis, websites inclusivos, sinalização e materiais promocionais adequados).

• Planejamento e operação de destinos turísticos.

 

Principais diretrizes da ISO 21902:2021 incluem:

• Acessibilidade física em meios de hospedagem, restaurantes, museus, centros históricos e espaços naturais.

• Acessibilidade comunicacional, com informações em formatos alternativos (braille, Libras, áudio descrição, leitura fácil).

• Formação de pessoal para atendimento qualificado e respeitoso.

• Inclusão nos transportes, com veículos acessíveis e apoio nos deslocamentos.

• Participação das pessoas com deficiência no planejamento e avaliação dos serviços.

• Monitoramento e melhoria contínua dos padrões de acessibilidade.

Essa norma é complementar a outras diretrizes globais, como a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006), os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS/Agenda 2030), e as recomendações da Organização Mundial do Turismo (OMT/UNWTO).

A associação entre Turismo Acessível e Neurourbanismo apresenta-se como promissora, especialmente quando se considera o papel do ambiente construído na saúde cerebral, emocional e comportamental das pessoas — com foco ampliado para grupos como idosos, pessoas com deficiência, autismo, doenças neurodegenerativas e transtornos cognitivos leves. A seguir, foram reunidos 5 principais pontos que articulam essas duas abordagens:

1. Ambientes urbanos e turismo como promotores de saúde cerebral

O Neurourbanismo, ao investigar como o ambiente urbano afeta o cérebro humano (especialmente em contextos de estresse, sobrecarga sensorial e privação de natureza), compartilha com o Turismo Acessível a preocupação com experiências urbanas saudáveis e restauradoras.

• Cidades e destinos acessíveis bem planejados podem reduzir o estresse urbano, que está associado ao aumento de cortisol, ansiedade e prejuízo à memória de trabalho.

• O turismo, quando acessível, pode atuar como prática restaurativa e cognitivamente enriquecedora, oferecendo estímulos benéficos e afetivos à plasticidade neural — especialmente em idosos e pessoas com demência.

2. Design urbano acessível e neuro-inclusivo

O design universal, essencial no Turismo Acessível, alinha-se com princípios do Neurourbanismo ao favorecer:

• Ambientes previsíveis e legíveis (wayfinding eficiente, boa sinalização, redução de ruído e de poluição visual).

• Estímulos sensoriais positivos, que influenciam o humor, a orientação espacial e a memória.

• Acessibilidade cognitiva, responsiva às pessoas com transtorno do espectro autisma (TEA), déficit de atenção ou demência.

 

Esses aspectos são compatíveis com práticas recomendadas pelo Neurourbanismo, como:

• Minimização da sobrecarga sensorial.

• Integração de espaços verdes e sensoriais.

• Ambientes com coerência espacial e suporte à interação social segura.

3. Jardins terapêuticos e trilhas sensoriais como destinos turísticos com acessibilidade plena

Espaços como jardins sensoriais, parques acessíveis e trilhas para pessoas com demência, já implementados em países como Austrália, França e Singapura, demonstram como o design baseado em evidências contemplado pelo Neurourbanismo contribui para a conformação de:

• Enriquecimento ambiental (EE): estímulos físicos, sensoriais e sociais capazes de ativar regiões cerebrais ligadas à atenção, memória e bem-estar.

• Experiências de “savoring” urbano: momentos de fruição, atenção plena e prazer sensorial vinculados à paisagem urbana ou natural.

4. Cidades como laboratórios vivos para experiências cognitivas inclusivas

O Turismo Acessível, quando embasado no Neurourbanismo, pode transformar o território urbano em um “laboratório vivo de experiências cognitivamente saudáveis”, atuando na:

• Redução do isolamento social (especialmente entre idosos).

• Promoção de atividades intergeracionais (museus com mediação cognitiva, cafés da memória, trilhas auditivas etc.).

• Incorporação de tecnologias assistivas (realidade aumentada, mapas táteis, sinalização sonora).

5. Turismo como ferramenta de justiça cognitiva e espacial

Por fim, ambos os campos podem se articular na promoção de uma justiça cognitiva — ou seja, garantir que todas as pessoas, independentemente de seu funcionamento cerebral ou condição neurológica, tenham acesso pleno à cidade, à cultura, ao lazer e à memória coletiva.

 

Para melhor compreender a integração entre o NeuroUrbanismo e o Turismo Acessível, sugere-se a leitura do estudo brasileiro apresentado na International Scientific Conference “Post COVID-19 tourism” 2024, pelos pesquisadores, arquitetos e urbanistas Ciro Albuquerque e Profa. Dra. Zilsa Santiago, pertencentes ao Instituto de Arquitetura, Urbanismo e Design (IAUD) na Universidade Federal do Ceará (UFC).

Albuquerque, C., & Santiago, Z. M. (2024). Neurourbanism and Accessible Tourism: Savoring Design as a therapeutic proposal for Healthy Aging. Proceedings of the International Scientific Conference 3-4 October 2024.

https://www.researchgate.net/publication/385205982_Neurourbanism_and_Accessible_Tourism_Savoring_Design_as_a_therapeutic_proposal_for_Healthy_Aging

 

Artigo de  Ciro Férrer Herbster Albuquerque

Arquiteto e Urbanista. Pós-Graduado em Neurociência, Gerontologia e Neuroarquitetura. Mestrando no Programa de Arquitetura, Urbanismo e Design, Linha de Pesquisa de Planejamento Urbano e Direito à Cidade, do PPGAU+D, na Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, Ceará. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7462-6941 . E-mail: ciro.ferrer@hotmail.com.

Galeria
artigos RELACIONADOS
PUBLICIDADE