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Estarão as smart cities no olho do furacão do impacto e das medidas mitigadoras da ação climática mundial? No âmbito do Acordo de Paris, e espreitando a COP26 das Nações Unidas, que decorreu em Glasgow, em que o mundo viu o regresso dos EUA a esta cimeira depois da presidência Trump, a verdade é que, mesmo com a União Europeia (UE) na vanguarda do combate às alterações climáticas, o mundo fracassará rotundamente neste desígnio, se os quatro objetivos da COP26 não forem atingidos numa resposta concertada a nível mundial.
Vejamos, resumidamente, o que dizem estes objetivos:
· Mitigação. Garantir a neutralidade carbónica global até 2050 e evitar o aumento de 1,5 °C da temperatura média do planeta. De uma maneira geral, acelerar a eliminação progressiva da utilização do carvão, incentivar o investimento em energias renováveis, reduzir a desflorestação e acelerar a mudança para veículos elétricos;
· Adaptação. Utilizar a ciência e a tecnologia para adaptar e proteger ecossistemas e populações, face às alterações que já se verificam e às que virão, pois o clima continuará a mudar com efeitos devastadores, mesmo que reduzamos já as emissões. É necessário proteger e até restaurar ecossistemas, construir defesas contra secas ou inundações extremas e/ou implementar sistemas de alerta e infraestruturas resilientes e modelos de agricultura disruptivos, capazes de evitar a destruição de habitações e de meios de subsistência em massa;
· Financiamento. Os países desenvolvidos têm de cumprir a sua promessa de mobilizar, pelo menos, 100 mil milhões de dólares em financiamento climático até 2023, sendo provável que 500 mil milhões de dólares sejam mobilizados entre 2021-25 (valores de 2020);
· Colaboração. As nações e blocos económicos devem trabalhar em conjunto e de forma concertada para enfrentar os desafios da crise climática, através da operacionalização do Acordo de Paris e da articulação entre governos, empresas e sociedade civil.
Se as promessas de Glasgow forem totalmente implementadas, calcula-se que o aquecimento global permanecerá abaixo de 2 °C, com o compromisso de que, no futuro, com novas ações a decorrer na década seguinte, os 1,5 °C de aquecimento global serão atingidos. No entanto, e mesmo cumprindo os cenários e as medidas propostas pela UE no que diz respeito às alterações climáticas, em termos de objetivos e legislação, prevê-se que a redução de emissão de gases com efeito de estufa até 2030 seja de apenas 55% ‒ objetivo até considerado otimista por muitos.
No entanto, mesmo que esta meta seja atingida, o planeta continuará a aquecer e os impactos previstos serão ainda mais extremos em relação aos que já se fazem sentir. Haverá aumento da frequência da intensidade de eventos meteorológicos extremos, como ondas de calor por todo o território nacional e europeu, aumento da pluviosidade extrema nalgumas regiões e seca extrema noutras. O impacto económico e social destes acontecimentos será de largos milhares de milhões de euros, sobretudo no custo adicional para se produzirem alimentos suficientes para as necessidades humanas, mas também nas medidas de mitigação para reduzir o impacto na vida das pessoas.
É, pois, necessário planificar medidas extraordinárias nas nossas cidades, só para contrariar o aumento da temperatura nas habitações e ruas, sobretudo no Sul da Europa, enquanto, no Centro e Norte, fenómenos de pluviosidade intensa em curto espaço de tempo provocarão inundações frequentes com a consequente destruição de infraestruturas e a necessidade de construir novas capazes de dar resposta ao aumento da frequência destes eventos.
Se emitir cada vez menos é uma grande preocupação na estratégia europeia para atingir as metas em 2030 e 2050, absorver mais emissões de carbono (inevitáveis pelos processos produtivos e pelo impacto da ação humana) faz igualmente parte da estratégia da UE. Basta pensar que um aumento de 10% das florestas europeias absorverá de imediato 10% do total das emissões atuais. Nesta medida, o aumento das áreas verdes e parques florestais nas grandes cidades do futuro dará um contributo muito significativo na absorção do carbono que emitimos e ajudará a reduzir significativamente a temperatura no espaço público, simplesmente porque estas criarão zonas de sombra, tornando a vida das pessoas que residem nessas cidades mais confortável.
Não se podem exigir mudanças comportamentais às organizações privadas, quando elas não sentem um compromisso forte dos territórios onde atuam. As cidades devem liderar e governar pelo exemplo e assumir um papel facilitador e influenciador de atitudes.
Do lado das empresas, já se começa a observar uma importante mudança de comportamentos. A sigla ESG (Environmental, Social and Governance) começa a ser um tema cada vez mais presente nas reuniões das administrações das principais e mais importantes empresas europeias. A maioria já compreendeu que, quer as exigências dos consumidores, quer as tendências de mercado tornarão irreversível uma mudança de paradigma para modelos de gestão corporativa que incluam as práticas associadas à sustentabilidade como parte integrante das estratégias financeiras.
O debate corporativo já não é apenas sobre a necessidade e compatibilização de práticas sustentáveis, mas também sobre alterações estratégicas e operacionais que produzam resultados efetivos. O desafio é evoluir para modelos de governança onde as práticas corporativas de transparência, ética e responsabilidade social e ambiental são componentes integrantes do processo operacional e de tomada de decisão e não apenas partes integrantes de uma agenda de comunicação institucional virada para o exterior.
Como patrocínio público e parte fundamental desta revolução cultural está a recente publicação pela Comissão Europeia da chamada Taxonomia Verde, que define, com detalhe, os critérios para que as atividades económicas possam ser consideradas sustentáveis no contexto das alterações climáticas, bem como a proposta de diretiva relativa à comunicação de informações sobre a sustentabilidade pelas empresas (CSRD), que visa melhorar o fluxo de informações sobre a sustentabilidade no mundo empresarial, reduzindo o riscos de práticas greenwashing, tornando mais justa e adequada a avaliação das empresas pelos cidadãos e o seu acesso aos mecanismos de apoio e financiamento público previstos para a transição energética.
Mas, se as principais organizações privadas já perceberam que o seu futuro depende de uma alteração radical do seu modelo de governo, qual será o papel das cidades inteligentes e da sua governança na concretização destes objetivos? Na nossa opinião, é primordial. Não se podem exigir mudanças comportamentais às organizações privadas, quando elas não sentem um compromisso forte dos territórios onde atuam. As cidades devem liderar e governar pelo exemplo e assumir um papel facilitador e influenciador de atitudes. Não só através das suas ações diretas de transformação do modelo de funcionamento urbano, mas também na forma e velocidade como influenciam as alterações de comportamento dos cidadãos, e avaliam e condicionam positivamente as práticas das organizações que atuam nos seus territórios, em total articulação com os objetivos assumidos pelos seus países no quadro dos pactos ambientais internacionais.
Neste quadro, há que ter a coragem e a frontalidade para tomar muitas medidas difíceis, impopulares e economicamente desvantajosas. Lideranças fortes que comunicam de forma clara e avaliam de forma contínua e transparente os resultados das decisões tomadas são instrumentos fundamentais para permitir diminuir barreias sociais e intolerâncias que apenas atrasarão a concretização dos objetivos de sustentabilidade.
A nova geração de cidades inteligentes deverá ter reduções significativas de emissões de gases com efeitos de estufa, proveniente da descarbonização dos transportes e da melhoria da eficiência energética dos edifícios. Deverá ter, na economia circular e na educação e participação cívica dos cidadãos, pilares fundamentais para a redução da pressão sobre os recursos naturais, o reaproveitamento de desperdícios e a criação sustentável de novos empregos e hábitos de consumo, em linha com iniciativas europeias como o Desafio Cidades Inteligentes ou o Acordo Cidade Verde, que é um excelente exemplo de atitude para uma nova cultura de governança sustentável. Trata-se de um movimento de cidades europeias em torno de uma visão comum de uma vida urbana segundo a qual, até 2030, as cidades serão locais atrativos e saudáveis para viver, com bons níveis de indicadores de qualidade do ar, da água e do ambiente sonoro, da biodiversidade urbana, do acesso a parques, a espaços verdes e a experienciar menos ruído ambiental, e de eficácia de economia circular.
As cidades inteligentes devem reeducar as populações e envolvê-las para aplicar com eficácia e rapidez medidas disruptivas, ainda pouco percebidas e valorizadas pelas populações, e que incluem a forma como se viaja, o ritmo de transformação energética dos edifícios, o processo de adaptação ao modelo de economia circular, o uso eficiente dos seus recursos hídricos.
Existe, pois, algum consenso político a nível da UE relativamente ao pacto climático: a neutralidade carbónica já não é uma questão de opção para a humanidade, mas, sim, uma necessidade absoluta de subsistência. Cada um de nós, como cidadão responsável, poderá discordar desta ou daquela medida que vier a ser implementada, no entanto, estar atento e disponível para fazer a nossa parte é um desígnio coletivo e civilizacional. Juntarmo-nos a este esforço comunitário é proteger o nosso planeta, o futuro das novas gerações e é, em última instância, ser smart.
Fotografia de destaque: © Ihor Serdyukov / Shutterstock.com
Por: Jorge Máximo, diretor central no sector bancário e ex-vereador da CM Lisboa (2013-17), e Januário Rodrigues, investigador Doutorando em Sistemas de Energia Sustentável.
Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 34 da Smart Cities – Janeiro/Fevereiro/Março 2022, aqui com as devidas adaptações.