A arquitetura da interioridade — A utopia experimental da 2ª ruralidade

Categorias: Território

Entenda a arquitetura da interioridade e a utopia experimental da 2ª ruralidade em Portugal, crucial para o combate ao despovoamento.— António Covas

Em Portugal há, como sabemos, muitos territórios rurais do interior em risco, à beira da desertificação e do despovoamento. Neste contexto, a construção social de territórios-rede é uma oportunidade que vale a pena experimentar e, por isso, é legítimo perguntar que condições mínimas devem estar reunidas para juntar, em redor do problem-solving de um território rural, uma constelação de interesses que seja capaz de reagrupar uma rede de municípios, uma universidade ou instituto politécnico, uma associação empresarial ou organização de produtores, uma ou mais associações de desenvolvimento local, os serviços públicos regionais, uma ou mais cooperativas de produção e serviços, os parques, as reservas naturais e as áreas integradas de gestão paisagística, em ordem a formar uma nova configuração territorial que permita desenhar uma estratégia para a reocupação de espaços rurais em estado de necessidade. Na sociedade da informação e do conhecimento estou convencido de que os territórios poderão ainda aprender uns com os outros, se lhes abrirmos a possibilidade de um projeto comum transdisciplinar, baseado numa ação coletiva inovadora e assente numa rede de cooperação multiterritorial de valor acrescentado. Os territórios-rede serão, assim, a oportunidade de um projeto experimental de inteligência coletiva territorial.

No plano de uma teoria geral dos territórios-rede, a sua construção social assenta em três pilares principais: a centralidade da cooperação descentralizada multiterritorial (1), a troca interna direta ou produção de internalidades (2) e a operacionalidade de um arranjo institucional entre os principais incumbentes (3).

Em primeiro lugar, e no plano da cooperação descentralizada multiterritorial, o território-rede (TR) é uma construção social complexa que envolve a compreensão do que aqui designamos como o paradoxo da vizinhança que se traduz por um baixo índice de cooperação entre territórios vizinhos que parecem preferir a impessoalidade do mercado à aparente intersubjetividade da cooperação territorial. Ora, o território-rede é, em primeira instância, uma estrutura de missão dedicada que privilegia e valoriza o capital social dos territórios vizinhos, isto é, a sua inteligência coletiva tácita e explicita numa lógica de curadoria territorial e, desde logo, os seus bens públicos e comuns.

Em segundo lugar, e no plano da produção e troca direta de internalidades, o território-rede vai buscar inspiração à economia circular e opera a conversão do sistema de produtos locais em um cabaz de produtos do sistema local, sistema cuja origem e denominação passam a constituir uma das suas formas de identificação mais emblemáticas; desta forma, o território-rede transforma o sistema produtivo local num agroecossistema circular e ensaia um compromisso entre os mercados de proximidade e os mercados à distância com toda a complexidade que estas duas redes implicam, da resiliência dos mercados locais à construção social da qualidade dos mercados à distância.

Em terceiro lugar, e no plano do arranjo socioinstitucional e operacional entre os principais incumbentes, o território-rede procura ser o lugar geométrico da governança multiníveis entre várias escalas de governo e administração e, nessa medida, é uma nova estrutura de oportunidades para outros operadores locais e regionais; nesta linha de ação operacional, o território-rede supõe requer que os níveis e escalas meso-territoriais NUTS III e NUTS II vejam esclarecidas as suas atribuições e competências à luz de uma nova estrutura de benefícios e custos de contexto territoriais; se quisermos, é necessário um centro de racionalidade de políticas públicas no quadro regional para melhorar a cooperação, articulação e consistência de territórios que podem ser considerados subsistemas funcionais da região.

Os territórios-rede podem reportar-se a territórios muito variados como, por exemplo: regiões termais, zonas de intervenção florestal (ZIF), áreas de cooperação agrícola, parques ambientais e biológicos, zonas turísticas e de lazer, áreas de paisagem protegida, parques intermunicipais, grupos empresariais e parques industriais e, ainda mais importante, uma diversidade de redes cooperativas e plataformas colaborativas que estes territórios podem constituir entre si, dando origem a outras multiterritorialidades e economias de aglomeração até aí desconhecidas. E aqui reside o potencial de inovação multiterritorial da cooperação descentralizada. Uma verdadeira arquitetura de interiores e da interioridade.

De um ponto de vista mais operacional, a construção social de territórios-rede implica quatro eixos de intervenção: o eixo paisagístico (capital natural), o eixo produtivo (capital produtivo), o eixo cultural (capital social) e o eixo da governança multiníveis (capital institucional), de acordo com as configurações socio-territoriais que se pretendem.

Eis alguns exemplos possíveis dessa arquitetura de novas configurações socio-territoriais:

– Uma rede de cidades ou uma comunidade intermunicipal propõe-se desenhar um sistema alimentar local (SAL), a partir da agricultura periurbana e de uma rede de circuitos curtos, tendo em vista organizar o comércio local de produtos alimentares de proximidade; a rede aproveita para requalificar o sistema de espaços e corredores verdes, utilizando, por exemplo, as hortas sociais, as linhas de água e os bosquetes multifuncionais para ligar as áreas urbanas, as áreas rurais e as áreas naturais de modo mais inovador;

– Um parque nacional/natural propõe-se modernizar o sistema produtivo local (SPL) do parque, criando, para o efeito, uma agroecologia específica, uma indicação geográfica de proveniência (IGP) e uma nova estratégia de visitação do parque por via de um marketing territorial mais ousado e imaginativo;

– Um grupo empresarial em parceria com uma rede de municípios propõe-se requalificar uma zona turística e uma amenidade adjacente e criar um nicho de mercado e um novo espaço público de qualidade para o turismo acessível, terapêutico e recreativo (turismo termal, de saúde e bem-estar) com base, por exemplo, numa pequena aglomeração de atividades terapêuticas, criativas e culturais criadas para o efeito;

– Um grupo de operadores turísticos propõe-se lançar uma estratégia criativa e integrada de agroturismo e turismo rural que inclui a oferta de novas amenidades paisagísticas e a participação dos visitantes nas práticas agro rurais tradicionais; o terroir das aldeias vinhateiras do Alto Douro é um bom exemplo, mas outros terroirs podem ser desenhados de acordo com uma estratégia conjunta de visitação e valorização do património material e imaterial da respetiva sub-região;

– Uma rede de vilas e aldeias (um ou mais concelhos) decide promover um programa integrado de envelhecimento ativo, que pode incluir várias tipologias de habitação colaborativa, uma comunidade energética, a agricultura sociocomunitária e a oferta complementar dos serviços comuns correspondentes;

– Uma ou mais Zonas de Intervenção Florestal (ZIF) propõe-se criar um sistema agroflorestal (SAF) ou agro-silvo-pastoril tendo em vista criar uma estratégia de intervenção integrada que vai desde a prevenção e recuperação de áreas ardidas à construção dos sistemas agro-silvo-pastoris, administração comunitária de baldios e a gestão agrupada do cabaz multiprodutos da floresta;

– Outras propostas inovadoras podem envolver a provisão de serviços ambientais e de ecossistema em zonas termais, parques ambientais e biológicos onde se pode observar e aprender a diversidade de agriculturas como arte, técnica e estética da paisagem rural, a ecologia da paisagem e a reabilitação de habitats, a economia da conservação, do baixo carbono e da energia renovável, a arquitetura funcional associada à bio construção e à bio climatização, por exemplo, num condomínio de aldeias, numa comunidade energética ou nima área integrada de gestão paisagística.

 

Nota Final

Como se constata pelas propostas apresentadas, só acederemos aos benefícios da 2ª ruralidade se usarmos de forma mais intensiva o recurso da cooperação franca e leal da descentralização multiterritorial interpares. A solução nunca será o país dual e bipolar, a solução será sempre o conhecimento, a cooperação, a cultura e a criatividade (4C), por intermédio de mais e melhor inteligência colaborativa e institucional que, agora, as plataformas digitais permitem realizar. A solução são as redes de cidades e vilas, de conhecimento com as universidades, de cultura com os artistas e as associações culturais, de extensão empresarial com as empresas e suas associações. Para tal, teremos de abandonar a nossa mentalidade paroquial de minifúndio político-social que tem servido para alimentar o capital de queixa, o capital que alimenta a indigência territorial mais do que a inteligência territorial.

Um exemplo concreto do que afirmo diz respeito ao papel futuro das instituições de ensino superior. Em cada distrito existe uma instituição de ensino superior e, também aqui, a desmaterialização de uma parte do ensino presencial será inevitável, assim se abrindo espaço à formação de redes dedicadas de assistência e extensão à comunidade. Falo de uma verdadeira revolução, de uma rede de cooperação regional e de contratos de desenvolvimento territorial com as comunidades territoriais. Já há muito dinheiro disponível e muito programa para gastar mal e deitar fora. Agora, falta auto-organização, redes de cooperação e inteligência institucional nos planos regional e intermunicipal. Mais uma vez, falta montar o sistema operativo que liga a rede de vilas e cidades, as associações empresariais, a administração pública e as instituições do ensino superior, as associações profissionais. O arranjo associativo e institucional será determinante. De resto, com inteligência institucional, comunidades inteligentes e redes colaborativas talvez possamos fazer mais e melhor com menos.

Artigo de António Covas . Professor Catedrático da Universidade do Algarve

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