A encomenda de arquitectura continua a ser feita adjudicando ao menor preço

Presidente da Ordem dos Arquitectos Gonçalo Byrne declara que a encomenda de arquitectura continua a ser feita adjudicando ao menor preço.

Gonçalo Byrne, presidente da Ordem dos Arquitectos (OA) admite que os arquitectos têm pela frente enormes e exigentes desafios para ultrapassar. São os que ganham menos em relação ao resto da Europa mas precisam de começar a abrir portas e a saber dialogar com todos.

Num momento de grandes incertezas económicas e sectoriais, a Ordem dos Arquitectos lançou recentemente um Observatório da Profissão com o objectivo de fazer um ‘retrato’ da profissão e perceber as suas potencialidades, fragilidades e oportunidades. Num momento, em que a actividade passa por diversos desafios, Gonçalo Byrne falou com o Diário Imobiliário e apontou as medidas que têm de ser implementadas para que arquitectura faça parte integrante do urbanismo, do planeamento e dos projectos das cidades. Na sua opinião, a arquitectura é imprescindível. É do bem comum que tratam, mas alerta que os arquitectos precisam de perceber que é necessário reconquistar um lugar onde a diversificação e a interdisciplinaridade será determinante.

Sobretudo, quando se debatem problemas sobre a Habitação. O presidente da OA, fala sobre o projecto “Mais Habitação” e admite que este omite a necessidade premente de um código de edificação, reconhecido como fundamental há mais de 60 anos. Garante ainda que o país tem de perceber que sem políticas públicas adequadas não vamos ter habitações a preços acessíveis para a generalidade dos portugueses.

Como vê a profissão actualmente em Portugal?

Vivemos tempos conturbados. O crescimento que se sentiu no sector da arquitectura no pós troika foi tímido e insuficiente. A pandemia que se seguiu agravou debilidades que vinham do passado. E, depois a guerra na Ucrânia e a espiral inflacionista agudizaram essas debilidades.

Os arquitectos têm pela frente enormes e exigentes desafios para ultrapassar, mas gosto de dizer que somos optimistas por natureza. Temos de saber olhar para este cenário e encontrar nele a oportunidade.

A Ordem dos Arquitectos criou, em 2021, o Observatório da Profissão. É um instrumento de recolha, análise e tratamento de informação que queremos que permita à Ordem ter a informação para construir alicerces sólidos para a sua actuação, antecipar as discussões e ser prepositiva.

A análise dos resultados obtidos no inquérito realizado aos membros, de 15 de Setembro a 30 de Outubro de 2022, a par com outras fontes de informação, remete-nos para uma profissão cada vez mais paritária (em 16 anos número de arquitectas cresceu 10,8%, atingindo, neste momento, os 46,3%), mais experiente (em 2012, no escalão mais baixo, 57% dos arquitectos tinha até nove anos de prática profissional, actualmente 40% tem até 10 anos de experiência profissional). Embora continuemos a falar duma actividade profissional onde a elevada precariedade é uma realidade, regista-se uma maior estabilidade nos vínculos laborais.

Observa-se, ainda, um crescimento de arquitectos a trabalhar por conta de outrem, no sector privado (32%) e na administração pública (14%), mas a dimensão das equipas por serviço não ultrapassa os cinco arquitectos em 58% no sector público e 65% no privado. Mas, apesar de 83% dos arquitectos trabalhar a tempo inteiro, dedicam-se menos ao exercício da arquitectura. 66% dos inquiridos dedicam à Arquitectura entre 51% a 100% do seu tempo total de trabalho. Note-se que mais de metade dos arquitectos acumula várias modalidades de exercício profissional, nem todas na área da Arquitectura. Curiosamente, neste inquérito, surgiram perto de uma centena de outras modalidades de trabalho, sensivelmente em 53 áreas, das quais se destacam funções relacionadas com o Desenho técnico, Comércio, Tecnologias de Informação, Gestão, Ramo imobiliário e até Design.

No trabalho por conta própria, houve uma franca recuperação entre os sócios, gerentes ou administradores de sociedades de arquitetura (17% face aos 8,8% de 2012 e aos 12,5% de 2006), mas o número de profissionais independentes ou ENI (26%) e os prestadores de serviços a outros arquitectos ou sociedades de arquitectura (4%) decresceu.

Observam-se, essencialmente, microempresas, 90% das sociedades têm entre 1 e 5 arquitetos e 67% apresentam um volume de negócios anual entre 25 e 250 mil euros.

É este o retrato da profissão. A arquitectura é um sector fortemente atomizado. A pequena dimensão das empresas dificulta o alcance de economias de escala e a melhoria das condições de trabalho. Os arquitectos continuam a trabalhar num quadro de enorme precariedade. 48% dos arquitectos trabalham mais de 40 horas semanais. Porém, cerca de 38% dos arquitectos tem um rendimento líquido aproximado ou abaixo do salário líquido médio estimado em 968,09 euros. Comparando os rendimentos médios anuais na Europa (EU-26) e em Portugal, um dirigente recebe em Portugal, com ajuste PPC, 17.065 euros anuais, bastante a baixo da média europeia de 42.576 euros.

A encomenda de arquitectura continua, maioritariamente, a ser feita adjudicando ao menor preço, ignorando que a dimensão de custo não é um critério adequado quando queremos contruir com qualidade. Estes são, sem dúvida, alguns dos desafios da profissão.

Quais os principais desafios que a arquitectura enfrenta?

A Arquitectura é imprescindível. É do bem comum que tratamos, mas os arquitectos precisam de perceber que é necessário reconquistar um lugar onde a diversificação e a interdisciplinaridade será determinante. Temos de começar a abrir portas, saber dialogar com todos, dos políticos aos outros agentes do setor: os engenheiros, os paisagistas, os promotores, etc. Não estamos, e não podemos estar, sozinhos e juntos não somos demais.

O arquitecto é um agente transformador da cidade e da paisagem. A arquitectura cria valor, mas o sector precisa de assegurar melhores condições para a prática profissional da arquitectura. Uma agenda – adiada – de firme e sólida desburocratização sem desresponsabilização, que reduza a hiper legislação construída nas últimas décadas. A simplificação responsável – que aumente qualidade e eficiência – é uma das chaves para podermos resolver problemas fundamentais que coletivamente enfrentamos: o da crise habitacional e o desafio da sustentabilidade.

Em termos de encomenda, os arquitectos continuam a ter na habitação o seu maior enfoque, tanto em obras novas como em reabilitação. O Programa Mais Habitação, como a OA teve já ocasião de se pronunciar, é um ponto de partida, mas não é ainda um ponto de chegada na solução necessária para a crise da habitação. Define um conjunto de medidas políticas – positivas  – no sentido de promover o direito à habitação. É, sem dúvida, é uma oportunidade para robustecer a intervenção do Estado no Mercado, procurando a sua regulação e, ao mesmo tempo, estimular o aumento da oferta privada e pública de fogos no arrendamento e habitação acessíveis, combatendo a especulação e alargando o acesso universal à habitação.

“O país tem de perceber que sem políticas públicas adequadas não vamos ter habitações a preços acessíveis para a generalidade dos portugueses”

De que forma o actual estado do mercado imobiliário influencia a profissão?

Os dados obtidos pelo Observatório da Profissão reiteram a ligeira recuperação da construção nova face à travagem expressiva na década anterior e a prossecução da dinâmica incutida nos últimos anos na actividade de reabilitação.

A pandemia teve os seus impactos, mas não paralisou o sector, como aconteceu noutras actividades. Isto é, evidentemente, positivo, mas estamos longe do que seria necessário para mitigar as enormes distorções que caracterizam este mercado em Portugal, com consequências sociais gravíssimas.

O mercado imobiliário tem duas realidades distintas no nosso país. Por um lado, existem cerca de 700 mil casas devolutas, mas, por outro, há falta de habitações. Este desequilíbrio entre a oferta e a procura, levou, desde 2010, a um aumento médio de 80% no preço das habitações e de 25% nas rendas. Nas obras públicas, assistiu-se a uma diminuição significativa do investimento. O mercado, na sua generalidade, é mais afectado pela ausência de uma visão estratégica e pela falta de políticas públicas consistentes, do que propriamente pela conjuntura.

O Estado tem-se demitido, nas últimas duas décadas, de desempenhar o papel que lhe compete, de regulador e estabilizador destes mercados. A qualificação, valorização e dignificação da arquitectura são dimensões que contribuem, inequivocamente, para um mercado imobiliário funcional e mais dinâmico. O mercado imobiliário, como um todo, tem tudo a ganhar se à arquitectura for dada a prevalência e prioridade que merece ao nível das políticas públicas para o sector.

O país tem de perceber que sem políticas públicas adequadas não vamos ter habitações a preços acessíveis para a generalidade dos portugueses. O PRR tem necessariamente de desempenhar um papel social relevante na agenda da construção de novas habitações, com soluções adequadas, com bom desempenho energético, com conforto, com segurança, em suma, com qualidade. Porém, o PRR não deve ser unicamente uma oportunidade para resolver carências actuais, mas também para lançar as bases de novas políticas para o futuro. Se, a par da execução destes investimentos, não forem desenvolvidos instrumentos para abordar o funcionamento do mercado como um todo, estaremos a mitigar alguns sintomas, mas não estaremos a resolver a origem do problema.

Existe alguns gabinetes que dominam os novos projectos imobiliários. Qual a consequência para a actividade profissional?

Somos mais de 28000 arquitectos. Estamos espalhados um pouco por todo o país. Essa pulverização é, aliás, uma característica do sector a nível europeu, e não só em Portugal. Mas é claro que os grandes investimentos imobiliários continuam a estar concentrados em determinadas cidades. E, também, parte do investimento na reabilitação do património português, por exemplo no campo da hotelaria, continua a ser gerido por gabinetes de projecto estrangeiros, que trazem os seus arquitectos. Mas a arquitectura portuguesa e os arquitectos portugueses são reconhecidos, aqui e lá fora. Mas é necessário trabalhar na maior capacitação das empresas, para aumentar a competitividade dos arquitectos portugueses.

Como analisa as políticas de habitação por parte do Governo, com o programa Mais habitação? E que implicações para a arquitectura e seus profissionais?

Acolhemos positivamente muitas das medidas enunciadas pelo programa “Mais Habitação”, porém existem alguns pontos críticos.

Defendemos que, a par do aumento da oferta de imóveis, se garanta a qualidade da habitação pública existente, promovendo projectos de requalificação e assegurando que cada projecto de construção ou requalificação se transforme numa oportunidade de reinvenção do espaço público.

Quanto à proposta de simplificação dos licenciamentos opomo-nos à privatização que se anuncia no domínio da construção.

Somos a favor da simplificação, mas a simplificação não pode ser feita sacrificando uma classe profissional, à qual são dados cada vez menos meios e cada vez mais responsabilidades.

É largo o espectro de operações urbanísticas que presumivelmente passam para isenção de controlo administrativo. Elimina-se a autorização de utilização, procede-se ao mero depósito das telas finais, acaba-se com o livro de obra, acaba-se com ficha técnica. Vemos como difícil celebrar um negócio jurídico com segurança.

Não pode ser esquecido o papel dos municípios e do Estado na mediação entre os interesses públicos e os interesses privados. O processo de edificação é de tal modo complexo, pela heterogeneidade das suas condicionantes e dos seus intervenientes, pela quantidade de normas, muitas vezes conflituantes, que para garantir o cumprimento das normas legais e regulamentares em obra é essencial a criação de um Código de Edificação. Porém, o projecto “Mais Habitação” omite a necessidade premente de um código de edificação, reconhecido como fundamental há mais de 60 anos. Sabemos que ele está a ser desenvolvido. Mas, de alguma forma, apesar da extensão de diplomas alterados sob o chapéu do Mais Habitação, a verdade é que não reconheceram como urgente a sua elaboração e, para nós, arquitectos, não existe maior urgência do que elaborar e pôr em prática o Código de Edificação. Um instrumento que permita procedimentos mais ágeis, sem colocar em causa a segurança dos investimentos ou a adequação urbana e patrimonial.

E sobre os projectos de arquitectura passarem a ser licenciados apenas com base no termo de responsabilidade dos projectistas. Qual a vossa posição?

A primeira coisa que gostaria de sublinhar é que quando um arquitecto assina um termo de responsabilidade está a atestar a sua conformidade com mais de 2000 diplomas. Os arquitectos sempre apresentaram o seu termo de responsabilidade com os projectos. Mas o problema é que as mais de 2000 normas que são utilizadas no direito do urbanismo recorrerem-se a conceitos indeterminados, muitas vezes no domínio da discricionariedade técnica. Nem o poder judicial se atravessa nesses casos. E, por isso, é que importa responsabilizar na justa medida, isto é, identificar o que de entre parafernália de normas legais e regulamentares é da responsabilidade de cada um. E dessa responsabilização o Estado não se pode isentar, pois é ao Estado que cabe garantir o equilíbrio entre os vários interesses em presença, os de interesse público, os privados (de promotores ou não), e os particulares, do cidadão.

Mas mais que a questão do licenciamento com base no termo de responsabilidade, preocupa-nos até a drástica redução das operações sujeitas a controlo prévio. Se, para simplificar, o legislador opta pela via da desresponsabilização do Estado, então deve, pelo menos, procurar um equilíbrio entre os controlos prévios e os controlos sucessivos das operações urbanísticas.

 “Percebemos que se procurem eliminar restrições de acesso às profissões e melhorar as condições de concorrência. Mas isso não pode significar a total desregulação da profissão”

Quais as principais preocupações quanto ao futuro da profissão?

Desde logo, como Presidente da Ordem dos Arquitectos (OA), preocupa-me o movimento que se começou a construir com a Reforma da Lei das Ordens e que agora prossegue com a revisão dos estatutos de todas as Ordens Profissionais. Percebemos que se procurem eliminar restrições de acesso às profissões e melhorar as condições de concorrência. Mas isso não pode significar a total desregulação da profissão. Desde as propostas de alteração à Lei-Quadro que sublinhámos a importância que tem para nós em particular as alíneas a) e b) do artigo 5.º. E opusemo-nos quando, a dada altura, o Governo tentou inverter a ordem destas duas alíneas. É que, de facto para nós é como está na lei que faz sentido ver o papel das Ordens: em primeiro lugar, a defesa dos interesses gerais dos destinatários dos serviços; em segundo lugar, a representação e a defesa dos interesses gerais da profissão. E a razão é simples. É que, no caso da arquitectura, os destinatários dos serviços de arquitectura não são apenas aqueles que encomendam o serviço e pagam por ele. Os destinatários dos serviços são todos os cidadãos. Do trabalho do arquitecto emergem as cidades e as paisagens que temos.

Depois, preocupa-me muito que Portugal não venha a aproveitar devidamente as potencialidades do PRR e tememos pela sua execução atempada, em especial no que toca ao desenvolvimento de programas de habitação e de infraestruturas. Se olharmos para a hiper legislação que enforma e condiciona a prática da arquitectura vemos como difícil que, no curto prazo, se venha a conseguir materializar a vontade de termos um melhor acesso à habitação. Reconhecemos o esforço do Governo neste campo. Revela um reconhecimento de um problema processual, burocrático. Mas sabemos que mudar a lei é a medida que, sendo fácil, menos resultados oferece. O maior problema são os hábitos instalados, e esses são incrivelmente resistentes. E por isso importa que este processo de simplificação não se torne num caminho de total liberalização da construção. Há ainda muitas insuficiências e lacunas para colmatar. Desde logo aquelas que garantam que o Estado não se demite de responsabilidades e que contribui devidamente para valorizar o papel desempenhado pelos arquitectos, simplificando a complexa teia de regulação existente, sem que se percam responsabilidades, competências e qualidade. A qualidade da habitação, um direito constitucional, de todos os cidadãos, não deveria, em caso algum, ser preterida em favor de critérios economicistas ou mesmo da urgência. Trata-se da casa, um local cuja qualidade todos, recentemente, com a pandemia, aprenderam a valorizar.

E tudo isto se prende também com um outro desafio que convoca a todos na sociedade: o da sustentabilidade do nosso futuro e da forma como o vamos construir. Este é um desígnio em que a OA está totalmente empenhada, sempre no sentido de criar e propor uma agenda comum, em prol de um futuro mais ‘verde’, por uma sociedade sustentável, por uma arquitectura sustentável, por uma profissão sustentável. Enquanto arquitectos, aceitamos e assumimos as nossas responsabilidades e queremos fazer a nossa parte.

Entrevista publicada no site do Diário Imobiliário

Foto © Nuno Almendra

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