Antonio Covas

A região-cidade do Alto Douro Vinhateiro

Categorias: Território

A região-cidade do Alto Douro Vinhateiro | António Covas

O Semanário Expresso do dia 11 de dezembro de 2021 trazia duas notícias que são a causa próxima destas breves reflexões sobre património cultural classificado e desenvolvimento sustentável de uma região.

A primeira refere o seguinte: “A celebrar 20 anos de elevação a Paisagem Cultural da UNESCO, o Alto Douro Vinhateiro não estancou a fuga da população, tendo perdido, desde então, 30 mil habitantes”.

A segunda refere o seguinte: “Torga inspira ópera inédita em Vila Real. Composição de Fernando Lapa e autoria de Eduarda Freitas a partir dos Contos e dos Novos Contos da Montanha de Miguel Torga. Eduarda Freitas quer mostrar um progresso aos que adivinhavam, para a região vinhateira, estagnação. A ópera está integrada nas comemorações dos 20 anos do Douro Património Mundial da UNESCO”.

O que é que estas duas notícias nos revelam e sugerem? Três breves reflexões a propósito.

I. A propósito do património cultural

A notoriedade e visibilidade atribuídas pelas classificações da Unesco e as convenções do Conselho da Europa não só constituem um estímulo fundamental para o estudo científico dos nossos recursos patrimoniais como um instrumento precioso de marketing territorial. Todavia, o triângulo virtuoso entre tecnologia, património e cultura precisa de ser conduzido com muita inteligência e maestria. A tecnologia, e em especial as artes digitais, recolocam a relação entre património e cultura num patamar mais elevado e abre a porta a uma economia performativa muito mais diversificada, em especial, a produção de conteúdos artísticos e culturais de maior valor acrescentado, por exemplo, para a valorização da marca territorial.

Com efeito, a tecnologia e a transformação digital podem ajudar a reduzir os efeitos externos negativos de algumas intervenções e a conceber um outro padrão de internalização desses efeitos, seja nos seus aspetos negativos como positivos, e este facto é um grande avanço para a gestão do património natural e cultural, material e imaterial. No mesmo sentido, a prevenção necessária de uma lógica de patrimonialização excessiva e abusiva, por via de regras, processos e procedimentos, de tal modo que não sejam irreversíveis os danos causados sobre os recursos patrimoniais, causados, por exemplo, pelo processo de turistificação;

Uma atenção particular deve ser prestada às novas cadeias de valor geradas pelo processo de patrimonialização. A introdução das tecnologias digitais e as opções de reabilitação e restauração alteram a repartição dos rendimentos internos à cadeia de valor, quase sempre em benefício de interesses exteriores aos próprios territórios, um problema que o território necessita de acautelar. No mesmo sentido, a valoração do património deve ser acautelada por uma adequada medida de valorização. A valoração reporta-se ao sistema de valores dominante e à respetiva cultura do património, porém, nem sempre é fácil que lhe corresponda uma medida de valorização que respeite aqueles valores e cultura. Esta relação entre valoração e valorização é crítica no processo de patrimonialização e na formação de uma justa cadeia de valor.

II. A propósito da cadeia de valor do Alto Douro Vinhateiro

A propósito da cadeia de valor do Alto Douro Vinhateiro são possíveis três abordagens. A primeira abordagem da cadeia de valor é aquela que se identifica com o conceito de fileira económica, numa visão reducionista de criação de valor. Trata-se, aqui, do modelo- silo mais convencional, organizado em redor de custos, preços e margens de lucro, de acordo com o princípio geral de que é necessário privatizar o benefício e socializar o prejuízo. Neste modelo de integração vertical, os problemas são de correlação de forças, de apropriação de mais-valias, de exportação de externalidades (negativas) para o orçamento e de maior ou menor regulação da fileira.

A segunda abordagem da cadeia de valor é aquela que se identifica com o conceito triangular de sustentabilidade, ao mesmo tempo económica, ambiental e social. Neste caso, há uma tentativa de encontrar um novo ponto de equilíbrio, com mais privatização de prejuízos e mais socialização de benefícios, através da introdução das noções de responsabilidade ambiental e social. Digamos que, nesta aceção, a cadeia de valor se mostra mais distributiva e transversal. Todavia, a sustentabilidade fraca mantém as velhas externalidades positivas e negativas e conserva a estrutura da fileira intocada, só a sustentabilidade forte pode promover a alteração estrutural da fileira e criar novas externalidades positivas em benefício dos mais desfavorecidos. E não estamos lá ainda, o combate está completamente em aberto e é de natureza eminentemente política. Mas os efeitos de aglomeração e dispersão já são mais evidentes.

A terceira abordagem da cadeia de valor é aquela que se identifica mais com os ecossistemas inteligentes e com a cultura organicista da paisagem global e do território- identidade. Digamos que a cadeia de valor adquire mais inteligência, memória, identidade e cultura, torna-se, portanto, mais horizontal. Neste registo, a figura do ator-rede é fundamental para aumentar a conexão inteligente de todos os sinais distintivos territoriais em presença, enquanto a fileira económica e a sustentabilidade ambiental se tornam variáveis instrumentais da distinção paisagística e da cultura territorial. A noção de terroir acolhe no seu seio algumas destas valorações ou signos distintivos. Não basta, pois, um território ser competitivo, ele tem de ser, sobretudo, um território distintivo.

Ora, no terreno concreto do Alto Douro Vinhateiro os efeitos internos e externos do défice de política regulatória (e sustentabilidade forte) na fileira agroindustrial e agroturística são por demais evidentes. Eis alguns dos aspetos que estão em jogo e que aguardam maior vigilância por parte da entidade regulatória e das organizações de concertação:

– As ineficiências internas à fileira e as mudanças de ciclo intergeracional,
– A estrutura do mercado, o grau de concentração e capitalização da fileira,
– A correlação de forças no que diz respeito à transparência e distribuição de mais-valias, – Os impactos das alterações climáticas, a gestão do risco e a socialização dos prejuízos, – O tratamento fiscal e os benefícios diferenciados de que a fileira usufrui,
– As estruturas de concertação socioprofissional e sociopolíticas e o seu poder efetivo,
– O papel regulador à luz dos efeitos internos e externos promovidos pela digitalização.

III. A região-cidade do Alto Douro Vinhateiro

Aqui chegados, não é indiferente a origem da inovação tecnológica e digital do Alto Douro Vinhateiro. Se for gerada no interior da própria fileira por acordo dos parceiros, a concertação interna interpares poderá resolver satisfatoriamente o problema. Se for gerada no exterior da fileira através de um centro de investigação, de uma incubadora empresarial ou de um consórcio sob a forma de laboratório colaborativo, tudo dependerá do papel atribuído ao ator-rede do Alto Douro Vinhateiro. Se este ator-rede não estiver no terreno e não coordenar efetivamente a aplicação das medidas de política que constam de diversos programas de intervenção, então, os efeitos de dispersão levarão a melhor sobre os efeitos de aglomeração. E foi isso que aconteceu no Alto Douro Vinhateiro nas

últimas duas décadas. Esse ator-rede poderia bem ser a Região-cidade do Alto Douro Vinhateiro, uma estrutura de missão que aporta massa crítica de recursos, pensamento crítico em termos de estratégia territorial e músculo suficiente para uma ação direta com impacto efetivo.

A Região-cidade do Alto Douro Vinhateiro pelo seu valor patrimonial e marca territorial poderia ser o nosso melhor exemplo de transição pós-produtivista em direção à 2a ruralidade. O capital social, institucional e cultural já acumulado nesta região, em especial nos planos patrimonial, agroecológico e paisagístico, permite-nos acalentar a esperança de mais e melhor intervenção sociocomunitária nas áreas rurais de baixa densidade, mas, também, a promoção e delimitação do interesse público sob a forma de novos bens públicos e bens comuns e novas modalidades de ação coletiva e colaborativa, sobretudo em zonas mais desfavorecidas de micro e pequenos produtores.

O novo paradigma territorial do século XXI será fortemente tributário da conexão entre cobertura digital e ciência dos dados. Isto significa otimizar infraestruturas ambientais e ecológicas e a sua conectividade estratégica, dinamizar as plataformas digitais e promover as redes colaborativas de base territorial. Termino com uma referência a Gonçalo Ribeiro Telles:

As ideias que presidem à criação da nova cidade devem ter como paradigmas a integração cidade-campo e a conexão urbanismo-ecologia. O homem de hoje tende a deixar de ser rural ou urbano para alcançar uma visão cultural que abrange tanto os valores da ruralidade como os da cidade. E quem diz os valores diz, também, as atividades. O conceito de paisagem global tende a informar todo o processo de ordenamento do território e o próprio urbanismo (Telles, 2003: 334).

Notas Finais

No futuro próximo o quadro de governação territorial de uma região-cidade inteligente revelará uma complexidade crescente, mas é o único que vale a pena realizar pelos efeitos de aglomeração que produz. Está em causa a arte da smartificação de um território, desde logo, na conexão entre cidades inteligentes e os seus territórios envolventes, sobretudo porque não é indiferente a forma como uma cidade se torna inteligente e, nessa medida, o modo como o processo de smartificação acontece e se repercute sobre a transformação digital do território envolvente.

Dois alertas finais. Uma visão essencialmente performativa pode ser redutora no que diz respeito ao enquadramento mais apropriado para desencadear o processo de smartificação. A coabitação entre a iliteracia digital e patrimonial pode pregar-nos algumas partidas se não tomarmos algumas medidas cautelares, desde logo uma reforma profunda nos programas escolares e na organização do edifício escolar intermunicipal na sua plenitude. Por outro lado, os processos de patrimonialização e turistificação não podem abdicar da sua responsabilidade social, ambiental e cultural, pois este é um campo (social, ambiental e cultural) onde a comunidade inteligente poderia ser extraordinariamente inovadora.

Estas são as minhas reflexões a propósito daquelas duas notícias do semanário Expresso. O Alto Douro Vinhateiro não estancou a queda de população porque faltou um ator-rede, uma autoridade política regional ou sub-regional que prosseguisse uma estratégia consistente de valorização do interior. Esse ator-rede terá quatro missões principais: promover a identificação com o território do Alto Douro Vinhateiro, cuidar da territorialização das medidas aplicáveis, reunir uma massa crítica de atribuições, competências e recursos e promover a formação e rejuvenescimento do capital social do território.

Se não existir no Alto Douro Vinhateiro uma autoridade política – a comunidade intermunicipal ou a região-cidade – que imponha novas regras de comportamento e regulação, a economia do Alto Douro Vinhateiro ficará nas mãos dos fundos de investimento, das plataformas tecnológicas, das agências imobiliárias e das agências temporárias de emprego, cada um a seu modo os novos agentes principais das cadeias de valor do nosso tempo. A extra territorialidade do Alto Douro Vinhateiro será uma realidade, cada vez mais longe das suas origens.

Artigo de Opinião de António Covas publicado no JN

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