Archivoz Magazine entrevista Ana Freitas

Categorias: Entrevistas

Em entrevista realizada por Alexandra Saraiva para a Archivoz Magazine, Ana Freitas, responsável pelo funcionamento da Oficina de Conservação e Restauro de Documentos Gráficos e pela preservação da Biblioteca do Fundo Antigo da Universidade do Porto e do Arquivo da Universidade do Porto que ao longo do segundo semestre de 2020 esteve envolvida no projeto de conservação e restauro de cerca de 20.000 documentos pertencentes ao acervo de Raúl Hestnes Ferreira, na Fundação Marques da Silva, tece uma perspetiva do trabalho desenvolvido e reflete sobre a importância da interdisciplinaridade no tratamento da documentação de Arquitetura.

(ARCHIVOZ) Como especialista em conservação e restauro, qual foi a estratégia delineada para iniciar o trabalho de higienização e conservação deste espólio?

(Ana Freitas) Qualquer profissional envolvido na área da conservação e restauro de documentos gráficos, particularmente da conservação de acervos de arquitetura, sabe que o seu tratamento envolve a tomada de decisões complexas. O caso do acervo do arquiteto Raul Hestnes Ferreira não foi exceção. De forma a otimizar os recursos disponíveis houve a necessidade de se estabelecer prioridades. Dada a grande extensão deste acervo, o qual contempla mais de 20.000 peças desenhadas e foto-reproduções, assim como toda a documentação relativa aos processos de obra, foi necessário pensar numa estratégia que se desenvolveu em dois momentos. Uma primeira fase contemplou a higienização mecânica e recondicionamento total do acervo, com a identificação sistemática das diferentes obras, suportes e avaliação do seu estado de conservação. Seguiu-se uma segunda fase, ainda em curso, para intervenções de restauro (ao nível da remoção de fitas adesivas, planificação local e consolidação de rasgões) e seleção das peças mais relevantes a digitalizar.

(ARCHIVOZ) Considera importante o apoio de um investigador especialista na obra do arquiteto de modo a enquadrar o acervo?

(AF) Considero de extrema importância, pois ajuda a contextualizar os objetos e a alocar de uma forma assertiva esquissos e peças desenhadas a obras específicas pois, inúmeras vezes, os desenhos não se encontram identificados a priori. Ter o apoio de um investigador que estuda e conhece de forma aprofundada a obra do arquiteto é, sem dúvida, uma mais valia, como se revelou durante o processo de tratamento do acervo do arquiteto Raúl Hestnes Ferreira. A tua colaboração, neste caso concreto, foi essencial para agilizar todo este processo e garantir a fiabilidade da informação a disponibilizar.

(ARCHIVOZ) Relativamente a este acervo, quais foram os pontos fortes e fracos para o desenvolvimento do seu trabalho?

(AF) Os pontos fortes residiram nos esforços concertados dos vários profissionais que integraram este projeto para uma correta preservação do acervo, no que diz respeito ao seu manuseamento e ao acondicionamento final. No que diz respeito aos aspetos menos positivos, é impossível deixar de referir os condicionalismos impostos pela pandemia do Covid 19.

(ARCHIVOZ) Neste acervo, quais foram as principais tipologias e suportes encontrados? E os problemas de conservação mais relevantes observados?

(AF) O acervo do arquiteto Raúl Hestnes Ferreira chegou à Fundação Marques da Silva tal como se encontrava no seu atelier, com objetos guardados há décadas e que assim permaneceram, até por nós serem manuseados. Muitos dos desenhos encontravam-se enrolados, acondicionados em tubos de cartão (por vezes 20 a 30 desenhos sem qualquer tipo de separação entre eles), enquanto outros possuíam charneiras aplicadas numa das margens de forma a poderem ser guardados em mapotecas verticais. Observaram-se esquissos, desenhos rigorosos, projetos de execução e foto-reproduções (nomeadamente diazotipias[1], com alterações realizadas a lápis de cor, pastel e caneta) nos mais diversos tamanhos e executados com diferentes técnicas. No que diz respeito aos suportes, estes dividiam-se em papéis velino, papéis vegetais (de diferentes épocas, tipos de produção, tonalidades e gramagens) e poliésteres.

No que diz respeito ao estado de conservação do acervo, os principais problemas observados residiam em deformações de suporte resultantes do seu acondicionamento em rolo, rasgões, lacunas e presença de fitas adesivas e etiquetas, bem como migração de compostos provenientes das diazotipias que acabaram por danificar de forma irreversível originais com os quais se encontravam em contacto direto.

(ARCHIVOZ) Quais os tipos de intervenções de conservação e restauro realizadas nos diferentes suportes?

(AF) Numa primeira fase, as intervenções executadas assentaram numa higienização mecânica dos suportes e no seu recondicionamento, como referido. Posteriormente, nas peças a digitalizar, procedeu-se à remoção de fitas adesivas, planificação e consolidação de rasgões. Um processo a ser, futuramente, alargado aos restantes objetos.

O recondicionamento dos desenhos revestiu-se de uma grande importância e teve de atender a certos pressupostos. Foi selecionado um material composto por 100% polpa de celulose branqueada e isento de branqueadores óticos, o qual foi utilizado na separação de todos os desenhos de arquitetura. Ao não possuir reserva alcalina pôde ser igualmente utilizado nas diazotipias. No início do projeto decidiu-se também separar os desenhos originais das foto-reproduções e separar as diazotipias das litografias em gel, de forma a mitigar o risco de dano por contacto direto.

(ARCHIVOZ) Depois de intervencionado um acervo, considera que a digitalização é uma operação importante como forma de o preservar?

(AF) Sim, a digitalização dos objetos permite, desde logo, limitar o manuseamento dos originais e, nessa perspetiva, prolongar o seu tempo de vida.

(ARCHIVOZ) Pela sua experiência, enquanto especialista em conservação e restauro, considera que existe sempre a necessidade de uma equipa pluridisciplinar no tratamento dos acervos?

(AF) No meu entender, é de todo pertinente e enriquecedor uma colaboração aberta entre os vários especialistas de forma a estabelecer um diálogo entre arquitetura, arquivo e património, enfatizando a importância da sua preservação a longo prazo.

(ARCHIVOZ) Muito obrigada por este precioso contributo para a Archivoz Magazine.

(AF) Obrigada pela oportunidade de falar sobre a importância destes trabalhos – invisíveis, mas fundamentais – para a preservação dos acervos.

[1] Diazotipia é uma técnica de reprodução de documentos através de compostos de azoto. Foi muito utilizada até finais do século XX, estando muito presente nos acervos de arquitetos desta geração.

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