Antonio Covas

As leis gerais da inteligência coletiva territorial

Categorias: Território

 

Nós não vemos as coisas como elas são, nós vemos as coisas como nós somos, isto é, as coisas são o que são de muitas maneiras.

— Anais Nim

 

Vivemos em plena sociedade do conhecimento. Os nossos problemas são, em boa medida, devidos aos défices acumulados de conhecimento. Um desses défices diz respeito à formação de inteligência coletiva territorial (ICT) que aflora aqui e ali através de comunidades inteligentes em busca do seu próprio caminho de smartificação. Vejamos, por exemplo, o que se passa à nossa volta. Nos últimos anos foram criadas em muitas regiões do país, com o apoio de fundos europeus e nacionais, o que poderíamos denominar como o embrião de comunidades inteligentes: parques de ciência e tecnologia, centros de investigação e desenvolvimento, polos tecnológicos, centros de negócios, ninhos de empresas, incubadoras e aceleradoras de startup, espaços de coworking, uma rede de smart cities, uma rede de living labs, uma rede nacional de associações de desenvolvimento local, uma rede rural nacional, uma rede Start up Portugal, uma associação de business angels, hubs tecnológicos e criativos, para além de muitas associações empresariais de geometria e vocação muito variáveis. Pensemos, por um momento, nos imensos efeitos difusos e dispersivos, de duvidosa sustentabilidade, com origem em todas estas presumidas comunidades inteligentes, pensemos no seu débil impacto aglomerativo e coesivo sobre os territórios de baixa densidade e ficamos, de imediato, com um amargo de boca no que diz respeito à sua eficácia, eficiência e efetividade, ou seja, uma ICT e smartificação bem-sucedidas.

 

E porque é que isto acontece? Por faltar, justamente, uma abordagem que cuide de saber e praticar que o todo é maior que a soma das suas parcelas, se quisermos, por faltar um ator-rede com uma estratégia integrada e reticular de curadoria territorial. De facto, não há ICT e smartificação de comunidades intermunicipais e coesão territorial que resistam a estes efeitos difusos e dispersivos. Muitos dos efeitos internos e externos das entidades referidas não são monitorizados e, mais tarde ou mais cedo, acabam por perder-se na malha sensível dos frágeis tecidos empresariais municipais e intermunicipais.

 

Como também sabemos, a inteligência coletiva dos territórios não se reduz a uma operação simples de informatização ou digitalização da informação e dados recolhidos. Muito antes, há uma inteligência tácita, uma memória histórico-cultural e uma sabedoria acumulada que, em princípio, informam o capital social, simbólico e institucional e a distinção de uma determinada comunidade territorial. De resto, a teoria económica do desenvolvimento local e regional, ao longo da sua história, já conta com alguns bons exemplos de lógica concetual e inteligência coletiva. Recordo algumas dessas referências teóricas: o distrito industrial, os meios inovadores, os recursos endógenos, os clusters, as fileiras e cadeias de valor, os sistemas e arranjos produtivos locais, todos eles, ou quase todos, expressando uma certa equação especifica de espaço, tempo e informação. Ora, a revolução tecnológica não só acrescenta a esta lista concetual o ecossistema digital, a realidade aumentada e virtual, as redes e plataformas e suas aplicações, como reduz bastante o lugar central desempenhado pelas variáveis espaço e distância, assim conferindo ao tempo uma outra racionalidade e centralidade.

 

Aqui chegados, só podemos dizer como Yuval Harari num artigo escrito para a Revista Visão (19 de dezembro 2024), A verdade é um tipo raro de informação e sem confiança as instituições e a democracia não funcionam. De facto, no ano em que as instituições foram reconhecidas com o Prémio Nobel da Economia, esta afirmação é plena de significado e muito pertinente em relação ao funcionamento global do sistema socioinstitucional e, correlativamente, à formação de comunidades inteligentes. De resto, sabemos, hoje, que as sociedades estão construídas sobre três grandes pilares – as instituições e as burocracias, as redes e as plataformas, os mercados e as corporações – e que, além disso, as Grandes Transições em curso anunciam uma mudança paradigmática nos modos de articulação e nas relações de força em presença. Vejamos, então, o que significa a complexidade sistémica da Grande Transformação à maneira de Polanyi (Polanyi, 1944) e aproveitemos o tempo que passa para atualizarmos e reformularmos as leis gerais da inteligência coletiva e do desenvolvimento dos territórios.

 

1. Lei da perspetiva e da multidisciplinaridade

O modo de ver um problema é uma parte importante do problema. São muito diversos os ângulos de observação de um problema e cada um deles implica não apenas uma diferente perspetiva analítica como, também, uma diversidade de representações da realidade. Esta multidisciplinaridade e transdisciplinaridade acrescentam valor, recursos e sinais distintivos ao território.

2. Lei da multifuncionalidade e da diferenciação

A diversidade na base aumenta a diversificação no topo. A pluralidade dos inputs alarga o campo de possibilidades dos outputs e as cadeias de valor beneficiam da diferenciação de processos, procedimentos e produtos. Dito de outro modo, a diferenciação dos recursos favorece os sistemas multifuncionais e policulturais; acrescentemos o trade off entre a gestão da rentabilidade (mais monocultural) e a gestão do risco (mais policultural) e teremos mais opções.

3. Lei do valor acrescentado e das propriedades emergentes do sistema

O todo é maior do que a soma das partes. Uma cultura dos territórios para lá das atividades sectoriais que neles se inscrevem e uma atenção especial às interdependências e propriedades emergentes do sistema, acrescentam valor ao território, sobretudo, se tivermos em devida conta a malha de ligações arteriais, capilares e intersticiais onde germinam novos recursos e afloram os embriões de novas cadeias de valores.

4. Lei da escassez relativa e dos 4C

A escassez é relativa, tudo depende de mais conhecimento, cooperação, criatividade e cultura (4C). Estas quatro variáveis fazem variar o nível e a qualidade de recursos livres e disponíveis num determinado território. Além disso, a restrição imposta pela delimitação e fronteira do território pode ser compensada pelos arranjos cooperativos e colaborativos entre territórios mais próximos ou mais longínquos.

5. Lei da circularidade e sustentabilidade

Reduzir a entropia e aumentar a sinergia do sistema de produção significa que os resíduos regressam sob a forma de recursos e reduzem ao mínimo as externalidades negativas do sistema produtivo. A fórmula dos 4R é conhecida – reduzir, reciclar, reparar e reutilizar – e refere-se, na prática, ao desenho circular das fileiras e cadeias de valor.

6. Lei da multiescalaridade e governação multiníveis

Numa economia-mundo e com cadeias de valor globalizadas os problemas têm várias escalas ou níveis de governação, administração, arbitragem e resolução; além disso, as dotações de recursos estão geralmente repartidas por esses diferentes níveis e escalas donde a relevância de um ator-rede que saiba lidar com os custos e benefícios contextuais dessa multiescalaridade.

7. Lei da justiça socioambiental e da equidade territorial

A justiça socioambiental dos recursos, por um lado, a equidade territorial e a responsabilidade entre gerações, por outro, são as duas faces da mesma moeda; ambas se referem à utilidade social do respeito, seja pela biodiversidade e permanência de todos os recursos e património naturais ou pelas gerações dos nossos filhos e netos.

8. Lei da distinção territorial e valorização patrimonial

As leis do desenvolvimento territorial e a sua smartificação são feitas de um triângulo virtuoso de competição, cooperação e distinção. Neste último caso, os sinais distintivos do universo simbólico e patrimonial são sempre uma fonte de inspiração; a valorização do património natural e cultural é, assim, não apenas uma via de acesso para atualizar a nossa memória, mas, também, um recurso para injetar no presente e futuro dos territórios.

9. Lei da conectividade e do ator-rede

A entrada na era digital é uma porta aberta para o mundo, uma verdadeira revolução, pois entramos, também, na era dos recursos e bens comuns colaborativos por via da conexão em rede e das inúmeras plataformas de colaboração, mais capitalistas e/ou mais comunitárias; nestas redes colaborativas o ator-rede é o principal protagonista e é a qualidade da sua ação que faz variar o stock e o fluxo de recursos na rede, assim como a interação positiva entre comunidades online e comunidades offline.

10. Lei da realidade virtual e dos ambientes inteligentes

Na era digital assistimos à entrada em cena da (i)conomia, isto é, da economia dos recursos imateriais e intangíveis, ou seja, vamos acrescentar realidade à realidade já existente; iremos criar muitas comunidades virtuais e inúmeras modalidades de inteligência coletiva territorial por via das plataformas digitais e da crescente hibridação/smartificaçãoentre recursos materiais e imateriais.

 

Notas Finais

Termino como comecei. Nos últimos anos foram criadas em muitas regiões do país, com o apoio de fundos europeus e nacionais, o que poderíamos denominar como o embrião de comunidades inteligentes. O balanço destas pequenas comunidades inteligentes territoriais é algo duvidoso no que diz respeito à sua durabilidade, devido, justamente, ao débil impacto das suas pequenas economias de aglomeração sobre os territórios de baixa densidade onde geralmente se localizam. Há, obviamente, algumas exceções, mas esta evidência permite-nos concluir que não há coesão territorial e smartificação das comunidades que resistam a estes efeitos difusos e dispersivos. Para colmatar estas deficiências teóricas e práticas e monitorizar muitas das suas externalidades positivas e negativas parece-me útil aplicar no terreno as leis da ICT aqui enunciadas e, sobretudo, eleger o binómio comunidade inteligente/ator-rede como estrutura de missão dedicada e cumprir eficazmente o papel de curadoria territorial.

Artigo de António Covas . Professor Catedrático da Universidade do Algarve 

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