Antonio Covas

Biopolítica e geoeconomia da 2ª ruralidade

Categorias: Território

Biopolítica e geoeconomia da 2ª ruralidade | Já anunciei a morte do rural tardio português à luz do paradigma capitalista dominante (Agroportal, 4 de setembro 2022). Venho agora anunciar o nascimento da 2ª ruralidade em nome de uma biopolítica dos sistemas-paisagem, dos territórios-rede e das plataformas colaborativas que se abrem ao futuro e, também, ao mundo rural. O ciclo de vida dos territórios tem, ele próprio, um ritmo específico de dissolução e recreação de sentido. Entre os fatores que contribuem para essa dissolução e recreação de sentido, num perpétuo movimento de desterritorialização e reterritorialização, contam-se:

– A crescente artificialização das cadeias agroalimentares e a descontinuação nas fileiras verticais de produção e consumo;

– A crescente marginalização de solos agrícolas, a sua crescente urbanização, o abandono e concentração da propriedade, mas, também, o aumento da economia informal e do risco de incêndio;

– A crescente mobilidade dos fatores que condiciona um correto ordenamento do território, a terra em primeiro lugar e as áreas mais sensíveis depois;

– A crescente volatilidade de capitais e investimentos que põe em causa os valores naturais e a gestão do sistema-paisagem;

– As prioridades da investigação dominante que responde às necessidades dos grandes laboratórios para obter resultados imediatos e que, por isso, nem sempre acautela a velocidade de reprodução dos recursos naturais;

– A incultura sobre os recursos identitários e simbólicos de um território que danifica a estrutura de oportunidades desse território e de que a turistificação excessiva é apenas um exemplo;

– O excesso de zelo regulamentar e administrativo face às micro e pequenas empresas, por um lado, e a desatenção face a algumas formas de concorrência imperfeita e seus projetos especiais que acabam por destruir território e pequenos negócios;

– A inércia conservadora das instituições de ensino que não atualizaram a sua missão face às necessidades de intervenção urgente nas economias locais e regionais e áreas sensíveis do território, mas, também, das organizações socioprofissionais representativas que trocaram a assistência técnica e a extensão rural pelos favores do lobbying político-institucional.

Apesar de todas estas dificuldades e oportunidades, ou talvez por causa delas, continuamos a acreditar que o campo das possibilidades do mundo rural não se reduziu e que, ao contrário, a polissemia dos territórios será cada vez mais tributária da aleatoriedade da natureza, por um lado, e da liberdade humana, por outro, e que estas duas contingências podem ser muito úteis a uma biopolítica da 2ª ruralidade e, bem assim, ao desenho e à gestão de sistemas territoriais e territórios-rede complexos e inteligentes (Covas e Covas, 2012) no próximo futuro.

O sistema-paisagem, as regiões biogeográficas e os territórios-rede são complexos de vida, história e geografia, resilientes à homogeneização do mundo-plano, onde ainda é possível descortinar uma inteligência territorial remanescente e onde ainda se respira o espírito e o génio dos lugares, mesmo em áreas de baixa densidade. Eles são, ainda, pequenos laboratórios de construção de novas territorialidades onde, lentamente, se recupera o capital natural e o capital social e se desperta a inteligência territorial adormecida dos lugares. Trata-se, se quisermos, de uma biopolítica do espaço-território, isto é, de respeitar, recriar e instigar a pluralidade e a diversidade das formas de vida do mundo rural.

Assim, as características de uma outra ruralidade também já se anunciam:  o resgate das agriculturas de época (1), o resgate das agriculturas alternativas (2), o resgate das agriculturas urbanas e periurbanas (3), a diversificação das formas de agricultura multifuncional no quadro de áreas integradas de gestão do sistema-paisagem (4), a modernização ecológica dos sistemas especializados de agricultura convencional (5), o reconhecimento de uma economia dos ecossistemas e dos serviços de ecossistema (6) e, sobretudo, o reconhecimento de novos formatos socioinstitucionais e organizacionais em benefício dos sistemas-paisagem, das regiões biogeográficas e dos territórios-rede (7), como são os condomínios de aldeia e os clubes de produtores, as zonas de intervenção florestal e as áreas integradas de gestão paisagística, as áreas de paisagem protegida como os parques naturais, os geoparques e as zonas termais, os centros operativos tecnológicos e os laboratórios colaborativos, as comunidades intermunicipais, entre outros formatos.

Perante o impacto devastador das alterações climáticas serão estes novos formatos socioinstitucionais e organizacionais que irão informar e promover a reconfiguração do sistema operativo dos sistemas-paisagem e territórios-rede e suas plataformas colaborativas através de uma geoeconomia ajustada a cada mosaico paisagístico, ao plano de infraestruturas e corredores ecológicos, aos sistemas produtivos locais, às amenidades paisagísticas e recreativas, ao dispositivo de gestão de riscos e à provisão dos serviços de ecossistema.

Neste complexo socio-organizacional cabe destacar o papel nuclear dos atores-rede e sua curadoria territorial na gestão de territórios-rede e seus agrupamentos multiprodutos como são, por exemplo, os parques agroecológicos das redes de vilas e cidades, os condomínios de aldeia protagonizados pelas uniões de freguesia, as áreas integradas de gestão paisagística protagonizadas pelas zonas de intervenção e associações de produtores florestais, os parques, os geoparques, as zonas termais e os baldios em formatos inovadores de associação e plataformas colaborativas.

Nesta transição de vários universos agro rurais em direção à 2ª ruralidade a transformação tecnológica e digital é, porventura, o desafio de mais elevada complexidade. E perante tal diversidade de agriculturas, faz sentido a pergunta: a transição digital aumenta a discriminação e reduz aquela diversidade ou, pelo contrário, adapta-se às várias velocidades e melhora o desempenho de cada subsistema se, para tanto, existirem agentes e atores em condições de protagonizar a transição e a cooperação em cada um e entre subsistemas?

Não é fácil responder a esta pergunta, mas a esperança reside, justamente, nas plataformas digitais colaborativas, descentralizadas e distribuídas, geridas de forma associativa, cooperativa, mutualista ou comunitária que podem, talvez, fazer a quadratura do círculo e adaptar-se às dinâmicas próprias de cada subsistema agro rural e, mais importante, promover a sua conexão e interligação para uma melhor inteligência coletiva territorial. Neste sentido, três questões relevantes merecem a nossa atenção nesta transição até à 2ª ruralidade.

A primeira diz respeito à constituição de uma meta plataforma colaborativa à escala regional NUTS II de modo a fazer o planeamento e a integração das medidas de política de coesão territorial a esse nível (programa operacional regional), onde se inclui, também, o modelo de arquitetura digital para recolha e tratamento de dados e a produção dos metadados que são necessários.

A segunda diz respeito ao modelo de extensão rural e formação empresarial e profissional, ou seja, o compromisso colaborativo entre a diretoria dos serviços públicos, a assessoria dos operadores privados, a curadoria dos bens comuns e comunitários, mas, também, as portas abertas para os estagiários e os jovens empreendedores saídos das escolas profissionais, das escolas superiores agrárias e das universidades.

A terceira diz respeito ao universo dos bens comuns colaborativos (BCC), onde incluem os serviços partilhados que são uma condição necessária para acompanhar a interoperabilidade das plataformas que operam a provisão desses bens comuns. Para termos uma ideia da variedade e da importância destes BCC basta elencar aqueles serviços que cabem dentro de um território-rede de vilas ou cidades: serviços ambulatórios de proximidade, mercados de ocasião ou 2ª mão, bancos de terras, recolha de resíduos orgânicos e compostagem, agricultura periurbana e circuitos curtos, serviços de saúde ambulatória, serviços técnicos de extensão agroflorestais e agro paisagísticos, plataformas de formação profissional e outsourcing, plataformas de crowdfunding e financiamento participativo, plataformas de serviços veterinários e bem-estar animal, serviços digitais de suporte às meta plataformas.

Notas Finais

Na sociedade digital é necessário colmatar o défice de redes e plataformas colaborativas que aproximam e agregam os principais atores deste imenso universo socio-corporativo. Em primeiro lugar, a meta plataforma regional (NUTS II) no âmbito do Programa Operacional Regional (POR) onde deverá estar sedeada a matéria-prima informativa mais importante para o planeamento e a tomada de decisão, em especial, os metadados que são relevantes para fazer o rescaling das operações de modernização do mundo rural.

Em segundo lugar, é necessária a constituição de uma rede regional de formação e extensão agro rural entre as organizações socioprofissionais, os serviços regionais, as escolas superiores agrárias e as profissionais agrícolas em conexão com os centros de investigação e os centros operativos de agricultura e inovação de modo a promover uma rede de aconselhamento técnico acessível a todos e prestada em tempo útil.

Finalmente, é fundamental contrariar a falta de rejuvenescimento da população ativa e o défice de jovens empresários e empreendedores e adotar uma outra estratégia de comunicação para o mundo rural e o advento da 2ª ruralidade. Os centros operativos tecnológicos, os laboratórios colaborativos e os centros de investigação, em estreita cooperação com as associações socioprofissionais, podem ser o triângulo virtuoso que faz falta para promover uma rede de estágios profissionais, um programa de bolsas de mobilidade para jovens investigadores e a incubação e networking dos empreendimentos, mas, igualmente, o acolhimento hospitaleiro, inteligente e imaginativo dos neorurais empreendedores que, em conjunto, nos levarão até à 2ª ruralidade.

 

Artigo de António Covas publicado no Agroportal

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