Para lá do desenho e da forma, a arquitetura de Carvalho Araújo é um sentimento que nos questiona. Um exercício de interpretação que desafia escalas, dinâmicas de usos e de interação com os lugares, para ser ela própria, numa atitude de resposta a uma necessidade e reforço de identidade de um lugar. Intervir para valorizar. Projetar para contar uma história e despertar sentimentos naqueles que a vivem. Das novas vidas para lá do passado, aos projetos acabados de traçar, numa conversa sobre regressos, viragens e reflexões…
Antes de tudo a disrupção, ou o questionamento?
Tudo começa com questões. Um determinado programa é uma necessidade imediata de um cliente, mas não quer dizer que ele tenha consciência, ou conhecimento para saber em que é que vai resultar. Conhece as primeiras necessidades, mas é precisamente a partir desse momento que gosto de questionar os programas, provocar os lugares de conforto.
Por isso sim, o questionamento e nunca acomodação e depois, quem sabe, a disrupção. A missão de um arquiteto é entender e abordar cada trabalho de forma única e não limitar-se a reproduzir, ou responder a pedidos. Porque só assim despertamos reações, só assim conseguimos transmitir a interpretação que fazemos de cada cliente. Fazendo isso com respeito pelas pessoas, espaços, cidades e pela forma como cada um vive.
No final a valorização de um lugar? A sua interpretação?
Intervir e valorizar, seja de forma mais óbvia, ou subliminar. A interpretação é o que vai permitir provocar e contribuir para reforçar a identidade, para além de uma conceção meramente formal.
Como reage a sua arquitetura a um momento como o que atravessamos atualmente?
Antes de mais a situação atual proporcionou uma espécie de ‘regresso a casa’, embora continuemos com diversos projetos no Brasil, entre os quais o Centro Cultural Cariri, um projeto de requalificação arquitetónica e urbana, centrado na parcela onde outrora funcionou o Hospital Manoel de Abreu. O projeto prevê, para além dos dois novos edifícios propostos, a requalificação do edifício existente, através da valorização dos seus aspetos mais relevantes e de equilíbrio estético. Estamos também com um museu nos Estados Unidos, mas o foco tem sido, sem dúvida, o mercado nacional, com muitas surpresas pelo percurso.
Que ‘histórias’ se escrevem por Portugal nos últimos meses?
Talvez uma das histórias mais invulgares seja uma proposta de projeto ligado à área do turismo que questiona aquilo que seria à partida uma unidade de alojamento, para se transformar numa verdadeira aldeia inserida na paisagem e onde as pessoas vivem em comunidade e experienciam todas as tradições e costumes daquela região. As respostas deste programa procuram essencialmente que os hóspedes deixem de ser turistas e passem a ser habitantes do local. Além disso é um projeto focado na integração e na sustentabilidade, que procura respeitar cada elemento da área envolvente.
Considera que esta proposta de projeto pode marcar uma viragem no paradigma do turismo no nosso país?
O interessante é o facto de questionar ideias preexistentes. Seria talvez mais fácil criar ali um hotel, mas que ia ter impacto no território. Este projeto permite pensar em novas identidades. O futuro pode passar por aí. As escalas têm de ser revistas. As políticas de planeamento territorial devem ser questionadas.
Este tipo de projetos são oportunidades de reflexão, podem ser novos pontos de partida para a construção de novos caminhos para o turismo em Portugal, através da valorização dos recursos naturais, da nossa herança cultural rica, da hospitalidade inata do nosso povo.
Esse ‘olhar para dentro’ aproximou-o ainda mais da sua cidade?
Sem dúvida, para além de estar com alguns projetos interessantes na região, nomeadamente uma proposta de requalificação do Mosteiro de Santa Clara, em Vila do Conde, para um Hotel, temos um conjunto de propostas pensadas para o centro histórico de Braga que vão pontuar e marcar a cidade com projetos de uma atitude diferente. Projetos que respeitam as escalas e os materiais, mas que têm, ao mesmo tempo, uma contemporaneidade muito evidente. Falo de exemplos como a proposta de um edifício habitacional que julgo que irá trazer uma nova vida à rua do Carvalhal, em Braga, assim como o pré-projeto de um hotel para o antigo edifício do Quartel dos Bombeiros, em Braga, que resulta da relação que se estabelece entre o novo volume e a pré-existência, na procura de um diálogo e da ideia de conjunto, que vai possibilitar a requalificação da praça Paulo Orósio, no coração do centro histórico, devolvendo-a ao uso público.
Braga precisa dessas referências?
Braga, como qualquer cidade precisa, de referências, mas também precisa de arquitetura anónima equilibrada. Contudo, para consolidar o conjunto, há necessidade de produzir arquitetura que marque referências. Eu não posso sair de um espaço qualquer e ter apenas a sensação de que era bonito ou feio. Há ali qualquer coisa que tem de marcar. Isso é processo, sentimento, é este esforço de entender o pedido, a expetativa.
Como dizia num outro artigo, este é o tempo do edifício-obra, produto comercial, produto sem conteúdo, que se vende a si mesmo, autista, relevante como espetáculo, mas sem prática e intemporalidade. Temos de lutar contra isso.
Há novas vidas, e abordagens, para lá do passado?
Não podemos ficar escravos do passado. Temos de ter consciência de que os edifícios e os espaços precisam de ser readaptados a novos usos. Respeitando o passado, eu gosto de confrontar o que foi feito e como foi feito, mostrando que um edifício poder ter um diálogo e uma cumplicidade com a cidade ainda mais evidente do que a que tinha.
Por exemplo na Casa na Rua Mouzinho de Albuquerque, em Braga, recentemente distinguido com uma Menção Honrosa no prémio ‘Reabilita Braga – Prémio Municipal de Reabilitação Urbana’, na categoria ‘Edificado’, a intervenção estruturou-se nessas duas vertentes. Por um lado, a preservação de grande parte do existente, através da recuperação dos elementos da fachada principal e da cobertura, mantendo a linguagem da praça e a hegemonia em relação aos edifícios adjacentes; por outro lado, a criação de um novo edifício no logradouro que se liberta da linguagem formal e plástica do existente, assumindo simultaneamente um gesto de rutura e de continuidade, através do prolongamento do material do pavimento e da fachada tardoz do edifício existente até ao novo edifício.
Assim como no projeto Casas do Alcaide, a fachada principal foi preservada, através da sua reconstrução com alguns dos elementos originais, conjugados com novos elementos, nomeadamente os vãos, devido à necessidade da demolição integral dos existentes. O interior do edifício, a fachada posterior e a cobertura assumem uma linguagem mais contemporânea, materializada nas soluções construtivas e materiais utilizados e adequada às novas necessidades de usos.
Por entre o verde da paisagem, a Casa da Caniçada, outro dos seus projetos mais recentes, é esse respeito pela integração? Essa harmonia com a natureza que se evidenciou noutros projetos anteriores como ‘A Casa do Gerês’?
Sem dúvida. A casa situa-se numa zona densamente arborizada junto à albufeira da caniçada, em Vieira do Minho. A volumetria do edifício existente no terreno foi o ponto de partida para a definição do novo volume composto por três pisos e onde se distribuí um programa tradicional de habitação unifamiliar. O programa mais íntimo encontra-se no piso mais elevado, enquanto que o programa social se distribui pelos dois restantes. No piso inferior a casa ‘abre-se’ para o terreno, como um convite para usufruir da natureza circundante. Mas é no piso intermédio que a casa assume maior expressão, através de duas grandes aberturas em fachadas opostas – uma assegura a entrada para a habitação e a outra ‘emoldura’ a paisagem voltada para a albufeira. No seu conjunto, transmitem uma maior sensação de continuidade entre o exterior e o interior e a permeabilidade visual entre o percurso de chegada – através da encosta densamente arborizada – e a albufeira da caniçada. O objetivo passou sempre por minimizar ao máximo a intervenção na envolvente de forma a preservar a densidade da vegetação, garantindo a sensação de resguardo e proteção conferida pela natureza.
Mais do que projetar, é preciso despertar emoções?
A nossa arquitetura assenta nisso. É uma arquitetura de emoções. Na fase processual, isso é muito evidente, mas depois é necessário que a obra transmita esse sentimento, essa alma para lá do desenho, algo que por vezes não se consegue descrever em palavras. Falo por exemplo de obras como a Galeria Mário Sequeira, a Casa do Gerês, ou o conjunto edificado De Lemos, em Viseu, entre outros. Eu costumo dizer que as nossas obras são sempre melhores que as imagens e isso é bom, porque é isso que se procura, o sentirmos algo quando vivemos a obra. Um espaço é muito mais o que sentimos, do que o que vemos. Cada um experimenta de forma diferente. É quase como ler um livro: cada um interpreta de uma forma distinta. A atmosfera de um espaço não se explica, sente-se.
Em cada trabalho uma viragem?
Neste momento, o projeto, para mim, é uma oportunidade de pensar em diferentes escalas. Depende das encomendas, depende dos projetos, mas é sempre uma oportunidade para colocar em causa. Seja através de um projeto de turismo que faz com que as experiências num determinado lugar ganhem novo sentido, seja nesse reavivar do espírito de bairro, de pertença a um lugar como o projeto que se pretende para a rua do Carvalhal, em Braga. Dar novas vidas a outras ruas do centro histórico, devolver-lhes a alma.
Tal como escrevi recentemente num artigo de opinião, nunca vamos ser quem somos se nos limitarmos àquilo que os outros pensam que somos e por isso é preciso sonhar. É preciso ir mais além e arriscar.
De que é feito o futuro?
Sensibilidade e estratégia, seja na arquitetura, no design de produto, ou na direção criativa. Valorizar os lugares tanto pode pedir intervenções mais visíveis, como propostas e projetos mais silenciosos. Neste mais de 20 anos do atelier temos projetos que são desafios, outros ruturas e outros experimentais, mas acima de tudo pretendemos ir muito além do desenho. Quando pensamos as soluções, não é só uma resposta ao pedido, é uma interpretação deste, como dizia acima. Tentamos que este seja sempre um ato muito estratégico, ou seja, desde provocar estilos de vida, a contribuir para reforçar uma identidade, é esse o caminho. Seja a projetar uma casa, um edifício público, uma escola, um museu, ou no design, importam o percurso e o processo. Um projeto, seja ele qual for, é sempre uma história inacabada, uma diferente interpretação e é isso que torna este exercício de criação fascinante. E o cliente acaba por ser a parte mais importante deste processo. É fundamental essa conquista do entendimento de cada pessoa que nos procura e desafia, para que no final obra resulte.
Por fim, espero acima de tudo que os acontecimentos deste ano, este tempo que agora temos sirva para refletirmos sobre a própria noção de tempo. Seja o tempo na arquitetura ou na vida.