Casa Comum: um pacto europeu pelo direito a habitar

A recente iniciativa da Comissão Europeia para a criação de um Plano Europeu de Habitação Acessível marca um ponto de inflexão na resposta institucional à crescente crise habitacional que afecta amplas franjas da população europeia. Anunciada no âmbito do Fórum do Grupo Banco Europeu de Investimento (BEI), a 12 de Maio de 2025, a proposta visa mobilizar recursos financeiros, regular o mercado e induzir uma nova geração de políticas urbanas inclusivas e sustentáveis.

Esta é, sem dúvida, uma oportunidade histórica. Mas não está isenta de riscos. O desafio não reside apenas na mobilização de fundos, mas na sua orientação estratégica, na capacidade de execução dos territórios e, sobretudo, na coerência entre discurso político e prática legislativa. Se o plano não for acompanhado de medidas vinculativas e metas claras, corremos o risco de perpetuar soluções fragmentárias, meramente paliativas.

 

1. No coração do plano encontra-se a constituição de uma plataforma de investimento pan-europeia, inicialmente dotada de 10 mil milhões de euros, que visa financiar até 1,5 milhões de unidades habitacionais acessíveis e energeticamente eficientes até 2027. Esta plataforma funcionará em estreita articulação com bancos de fomento nacionais, autoridades locais e parceiros privados, promovendo modelos de cofinanciamento e de partilha de risco.

A criação de um portal europeu de acesso único a financiamentos e aconselhamento técnico constitui outro pilar fundamental, visando facilitar a capacidade de resposta de municípios e entidades promotoras de projectos de habitação. Mas para que esta iniciativa não se converta num instrumento tecnocrático, é imperativo que o apoio técnico se traduza em capacitação real das administrações locais e na remoção efectiva dos bloqueios burocráticos que frequentemente comprometem a execução dos projectos.

 

2. Durante o processo de ausculta pública, diversas entidades, como o Comissariado Europeu para a Coesão e o CESE (Comité Económico e Social Europeu), apresentaram propostas substanciais, com destaque para:

· A consagração da habitação enquanto direito fundamental na legislação primária da UE, equiparando-a a serviços essenciais como saúde e educação;
· A exclusão dos investimentos em habitação social dos limites impostos pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento;
· A revisão das regras em matéria de auxílios estatais, de forma a permitir um apoio mais robusto a projectos habitacionais com finalidades sociais ou de eficiência energética;
· A utilização dos fundos de coesão e do Mecanismo de Recuperação e Resiliência para alavancar programas estruturais de habitação.

Estas propostas não são apenas pertinentes: são essenciais. Sem uma revisão profunda do enquadramento macroeconómico europeu, dificilmente os Estados-Membros conseguirão implementar políticas de habitação estruturais e de longo prazo. A Europa precisa de abandonar a lógica da excepção e tratar a habitação como uma prioridade permanente da agenda política e orçamental.

 

3. Outro eixo em debate incide sobre a necessidade de intervir diretamente na dinâmica especulativa dos mercados imobiliário e de arrendamento. Várias propostas sugerem:

· A criação de um registo europeu de transparência para transações imobiliárias, para prevenir práticas de lavagem de dinheiro e especulação excessiva;
· A imposição de limites ao uso habitacional para fins turísticos (short-term rentals), bem como medidas fiscais penalizadoras para os imóveis devolutos ou subutilizados;
· A promoção de modelos de propriedade colectiva, como cooperativas de habitação (community land trusts), com apoio directo das entidades europeias.

Ignorar este domínio será um erro fatal. A habitação acessível não é compatível com um mercado inteiramente liberalizado e opaco. A Europa precisa de ousar regular, redistribuir e intervir, sob pena de ver aumentar o fosso entre ricos e pobres, entre centros urbanos gentrificados e periferias empobrecidas.

 

4. O plano contempla ainda a implementação de programas orientados para grupos particularmente vulneráveis, como jovens, idosos, migrantes ou sem-abrigo. Entre as iniciativas sugeridas está o alargamento da abordagem “Housing First“, especialmente adaptada à juventude, e a incorporação de critérios de inclusão social nos concursos públicos de habitação.

Adicionalmente, o princípio da coesão territorial surge como vector estruturante, com prioridade a investimentos em zonas periurbanas e rurais, para contrariar fenómenos de concentração urbana e segregação socioespacial. Importa, no entanto, garantir que estas intervenções não resultam em soluções de segunda linha, mas constituem alternativas habitacionais plenamente integradas e qualificadas.

 

5. A proposta de um Plano Europeu de Habitação Acessível encerra um potencial transformador. Mas esse potencial não se concretizará sem vontade política, coragem regulatória e uma clara opção por modelos de desenvolvimento centrados nas pessoas. Este é um momento de escolha: ou tratamos a habitação como um bem comum a proteger, ou continuaremos a assistir ao agravamento de uma crise que já mina a coesão social e territorial da Europa.

O tempo de agir é agora. E não agir com timidez, mas com ambição, com visão e com um compromisso inabalável com a dignidade de quem não tem onde morar.

 

Texto de Martim Guimarães da Costa . Arquiteto 

 

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