Antonio Covas

Economia criativa, os serviços de ecossistema e os cinco capitais

Categorias: Território

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O conceito de economia criativa, como estratégia de desenvolvimento de um território e, muito em particular, os territórios ou áreas de baixa densidade (ABD), está em constante movimento e reformulação. No princípio, até aos anos noventa do século passado, era medido como uma simples contribuição setorial para o PIB, depois, em meados dos anos noventa, o governo britânico de Tony Blair aglomerou as indústrias culturais e criativas e essa aglomeração ou clusterização passou a designar-se de economia criativa (John Howkins, 2001). No século XXI a economia criativa alargou as suas referências concetuais e adaptou-se, sucessivamente, ao índice de desenvolvimento humano (IDH), aos objetivos de desenvolvimento do milénio (ODM, 8 objetivos até 2015), aos objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS, 17 objetivos até 2030) e, agora, com uma pertinência muito mais crítica, procura ajustar-se às grandes transições paradigmáticas e sistémicas em curso cujos exemplos mais notórios são as transições climática, energética, ecológica, demográfica, digital, cibernética, socioeconómica, securitária, geopolítica. Nas últimas décadas, portanto, a economia criativa ampliou o seu âmbito de aplicação, transformou radicalmente a sua caixa de instrumentos e, bem assim, os seus processos e procedimentos criativos e hoje, perante a complexidade da sua tarefa, procura reconfigurar arranjos socioinstitucionais, comunidades de risco e estruturas de missão multiterritoriais para impedir que os impactos sistémicos das grandes transições façam eclodir uma verdadeira tragédia dos comuns de consequências irreparáveis.

Nesta sequência, duas breves reflexões fazem todo o sentido. Em primeiro lugar, enunciamos aqui algumas propriedades emergentes da economia criativa, em forma de decálogo, e a pensar, sobretudo, nas áreas de baixa densidade (ABD), muitas delas severamente atingidas pelos efeitos assimétricos das grandes transições. Eis o decálogo:

 

1. Reduzir a desigualdade e a marginalidade sociais favorece as soluções criativas,

2. Valorizar o património, a arte e o espírito dos lugares favorece as soluções criativas,

3. Resolver os principais estrangulamentos da cidade favorece as soluções criativas,

4. Converter a periurbanização em ambientes acolhedores favorece as soluções criativas

5. Aprofundar a circularidade dos sistemas produtivos locais favorece a criatividade,

6. Reforçar a conexão emocional com a visitação das ABD pode ser muito criativo,

7. Interligar os eventos às redes e oficinas de artes e ofícios favorece a criatividade,

8. Reforçar as comunidades online e a sua smartificação favorece a criatividade,

9. Reforçar a diversidade e a tolerância socioculturais favorece os projetos criativos,

10. Reforçar as competências criativas é um imperativo de desenvolvimento.

 

A segunda reflexão diz respeito à economia criativa como imperativo categórico na fase atual do processo de integração europeu e da economia global. Estamos em 2024 e bastaria olhar para os 17 ODS da ONU para chegarmos depressa à conclusão de que para atingir esses objetivos até 2030 seria necessário muita imaginação e criatividade nos planos político-institucional, socioeconómico e tecno-digital para pôr no terreno um número elevado de comunidades inteligentes, redes distribuídas e plataformas colaborativas tendo em vista, justamente, mudar o paradigma da relação entre o ator e o sistema na sociedade digital em que já nos encontramos.

Há, todavia, uma característica, digamos, pós-estrutural, para anunciar que já entrámos numa nova fase concetual e teórico-prática em matéria de economia criativa. Ou seja, para lá da contribuição simples ao PIB, do cluster das indústrias culturais e criativas e dos arranjos relativos aos ODS das Nações Unidas, a economia criativa, hoje, deve servir para reinventar as economias nacionais e regionais no quadro das grandes transições em curso e da turbulência que introduzem no mercado único europeu e na economia global. De facto, estas transições transformam as hiperligações do mercado único e os seus limites territoriais, põem em causa a autonomia de certas regiões e aceleram a circulação inter-regional e transnacional das quatro liberdades fundamentais do mercado único europeu. Isso é por demais evidente no que diz respeito à livre circulação de pessoas, onde o mercado e a liberdade procuram ajustar-se à plena aplicação do mercado único europeu. Dito de outro modo, num país que exporta mão de obra qualificada e importa mão de obra indiferenciada e que depende, cada vez mais, da smartificação dos territórios, do nomadismo dos talentos criativos e da colaboração entre plataformas online e offline, é imprescindível que a economia criativa se reinvente ela própria, pois é necessária muita criatividade e política criativa para uma plena aplicação dos seus atributos mais positivos.

Nota Final

A economia criativa está omnipresente na esfera individual, mas está, também, presente na esfera política ao atravessar vários ministérios, públicos muito diversos e ter efeitos difusos muito alargados. Não deixar escapar estes efeitos é uma tarefa complexa que os arranjos socioinstitucionais, socio-territoriais e interassociativos devem levar em devida conta. Aqui as competências criativas são decisivas, donde a importância crucial do decálogo enunciado e o investimento em comunidades inteligentes, redes distribuídas e plataformas colaborativas, os principais operadores da economia criativa e da sociedade em rede.

Em síntese, no futuro próximo os pactos e os planos de transição em aplicação no quadro da União Europeia fazem apelo a um pensamento complexo e uma economia criativa dos serviços de ecossistema e dos seus cinco capitais, a saber, os serviços de ecossistema provisionados pelo capital natural (1), os serviços técnico-científicos provisionados pelo capital de inovação (2), os serviços produtivos provisionados pelo capital humano e social (3), os serviços culturais e criativos provisionados pelo capital simbólico (4) e os serviços sociopolíticos e socio-administrativos provisionados pelo capital institucional (5), estes últimos os incumbentes principais a quem caberá, no terreno próprio das comunidades intermunicipais e multiterritoriais, fazer a mediação e articulação finais entre territórios e áreas de baixa densidade. Muito trabalho para a economia criativa nesta terceira década do milénio. Voltaremos ao assunto.

Artigo de António Covas publicado no JN

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