
Temos muito prazer em ter connosco os arquitetos e professores Cristiane Muniz e Fernando Viégas, da Escola da Cidade de São Paulo e do coletivo UNA. Para começar, falem-nos um pouco do vosso percurso académico, dos professores mais marcantes, eventualmente dos exercícios mais interessantes que fizeram nessa altura.
[Fernando Viégas] – Nós entrámos na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP), que é uma escola pública, em 1989. Foi um ano muito importante no país, o primeiro ano de eleições diretas para Presidente da República, depois da ditadura militar. Toda a minha geração votou, junto com a dos nossos pais, pela primeira vez. Foi um ano de reabertura política, e isso marcou muito a nossa geração, foi um momento de esperança, de reconstrução. E nós, como estudantes, entendemos que o nosso papel era tentar reatar o fio da meada, tentar reconstruir histórias que tinham sido interrompidas bruscamente, de cassação de professores, com o exílio de muita gente importante no país, e da morte por assassinato de alguns de alguns importantes intelectuais brasileiros, jornalistas, artistas. No segundo ano da escola, nós nos organizámos como grupo, fazendo uma revista, chamada Caramelo, onde retomávamos uma prática de revistas de estudantes na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), interrompidas na ditadura. Conversámos com ex-estudantes, já nesse momento arquitetos importantes, gente que continuava na luta, sobre essas publicações antigas e pudemos fazer, a partir dessa experiência, uma continuidade do que sempre foi esse lugar de reflexão crítica dos estudantes na FAU. Era uma revista de artes, de arquitetura, um número por semestre; fizemos seis com o mesmo grupo, uma sétima já de transição e uma oitava em que somos convidados já quase apenas como consultores.
[Cristiane Muniz] – Ainda tiveram mais quatro números depois que a gente saiu. Dez números, no total.
[FV] – Trabalhámos nisso muito intensamente e isso nos formou porque tínhamos que procurar muitos professores, entrevistar muita gente, publicar muito projeto. Abriu um mundo de possibilidades, de encontros e de diálogos, que a gente sabia que seriam importantes para o resto da nossa vida. Nesse sentido, teve uma importância muito grande esse momento da reabertura política e da Caramelo.
Quando vocês entraram, o curso de arquitetura tinha quantos anos?
[CM] – Era uma estrutura parecida com a de hoje. Cinco anos.
[FV] – Entravam 150 estudantes: era um exame super difícil, porque vinha gente do Brasil inteiro e, até hoje, segue um número muito restrito de vagas, infelizmente. Mas o nosso curso já foi no edifício da FAUUSP, do Vilanova Artigas. A escola começou no bairro Higienópolis, na rua Maranhão, num casarão Art Nouveau, muito bonito, eram 60 ou 80 estudantes; quando foi para o campus da Universidade de São Paulo passaram para 150, mas já foi para lá com a reforma de ensino feita pelo Artigas, que é tão importante quanto o próprio edifício. Um nasce do outro. A gente também teve a sorte de ter uma geração importante de professores, mas a convivência no edifício da FAU foi absolutamente transformadora. Aquele edifício muda muito as pessoas, exerce uma outra possibilidade de convivência, de liberdade, de experiência, de ações que são sempre coletivas. É um edifício muito especial, é difícil falar da nossa formação sem falar dessa presença da arquitetura.
É um edifício formador?
[FV] – Um edifício formador, que te dá muita esperança na profissão.
Esse clima de esperança, que surgiu com o fim da ditadura, como é que se refletiu na própria escola?
[FV] – Houve retorno de professores, mas as cicatrizes ainda estavam abertas. A Escola de Arquitetura, por ser uma escola historicamente muito engajada politicamente, teve discussões internas, de grupos de esquerda que tomaram posições diferentes nesse momento – os que eram mais ligados ao Partido Comunista, os que eram trotskistas… Existia uma questão premente de optar ou não pela luta armada, pela tentativa de uma guerrilha armada contra o governo militar. E isso dividiu um pouco certos grupos. E demorou algum tempo para que essas coisas assentassem. Eu acho que a gente vive, até hoje, resquícios dessa… eu não diria disputa, mas de uma certa…
Os franceses diriam uma malaise…
[FV] – Sim, e é curioso porque isso também está ligado a uma história maior, que é justamente a história da formação do Partido dos Trabalhadores. O Partido dos Trabalhadores, o maior partido de esquerda do Brasil até hoje, do qual o Lula sempre foi um protagonista, nasceu do movimento operário, dos metalúrgicos, das greves, e foi uma alternativa à esquerda, nesse momento de retomada da democracia. Para nós, foi natural nos colocarmos diante de uma possibilidade de crescimento de um partido novo de esquerda no Brasil e, ao mesmo tempo, entender a grande produção moderna de arquitetos que estavam mais próximos do Partido Comunista, como era o caso do Artigas ou mesmo o caso do Paulo Mendes da Rocha ou do Jon Maitrejean, que tinham sido afastados da escola. Foi importante poder entender que éramos parte disso tudo e não precisávamos de nos colocarmos de um lado ou de outro, porque já não fazia sentido quando nós entrámos.
Nessa nossa experiência da revista Caramelo, queria adicionar que, além de construir uma reflexão sobre arquitetura, também experimentámos uma forma coletiva de fazer. Que sem dúvida nos moldou e que levámos até hoje. Eu tive um grande privilégio em minha vida, estudei em duas escolas do Artigas. Com cinco, seis anos, estudei numa escola infantil de Santo André, do Artigas, que se chama Vila Alpina; uma escola pública incrível, absolutamente impressionante na forma de ocupar o terreno – era um lote de quase uma quadra, muito grande, com declives muito acentuados. Uma escola que ocupa esse terreno todo, mas que tem três salas de aula, os espaços de lazer das crianças, piscinas, era uma escola muito progressista para uma escola pública naquele momento, os anos setenta. Isso, para mim, foi muito transformador. E, durante muitos anos da minha vida, eu achei que ia ser professora de ensino infantil…
Não estava longe da verdade.
[CM] – Não, e foi incrível. E isso depois acontece obviamente na FAUUSP, esse aprendizado a partir do espaço, esse lugar que, por si, já te ensina. Na Caramelo, entrevistámos o Marcos Acayaba. Ele não tinha ainda voltado para a FAU, estava um pouco desanimado. O Fernando falou bem o que significava esse momento – ainda de feridas, ainda um momento dividido, de difícil entendimento do que ia ser essa democracia jovem, em todas as dimensões, inclusive a profissional. O Marcos Acayaba sempre diz que essa entrevista foi uma injeção muito grande de ânimo e que o trouxe de volta para a FAU. Há muitos outros professores que nós tivemos, e é impossível falar da nossa formação sem falar dessas presenças; é difícil citar porque a gente vai esquecer alguém, mas o Eduardo de Almeida é um professor que foi muito importante para nós. Foi meu orientador do final do trabalho, participou de nossas bancas, depois nos orientou no mestrado, orientou os dois. O Antônio Carlos Barossi não sei se vocês conhecem – o Tata -, ele é incrível, é um arquiteto excelente e é um professor fabuloso. A Regina Meyer, que é uma professora de urbanismo que nos abriu, no começo dos anos oitenta, possibilidades de conjunção de desenho urbano com urbanismo, de uma forma como a gente não imaginava, foi fundamental. A Helena Ayoub, uma professora de projeto também, naquele momento muito nova, foi uma professora incrível e é uma arquiteta fantástica, fez agora esses projetos de escolas públicas em São Paulo que são lindos, também a Ana Belluzzo… E o Paulo Mendes da Rocha volta para FAU um pouco antes de a gente se formar.
[FV] – Foi nosso professor de projeto no terceiro ano, e orientador da minha tese, já no quinto ano.
[CM] – Foi seu orientador e participou de minha banca.
Como é que era o Paulo Mendes da Rocha como professor de projeto do terceiro ano? Como era a relação com os alunos?
[FV] – A geração do Paulo – o Joaquim Guedes, o Gian Carlo Gasperini, o Abrahão Sanovicz, o Teru Tamaki, que era o sócio do Fábio Penteado, o Arnaldo Martino, que era sócio do Eduardo de Almeida – era a geração desses grandes arquitetos que a gente conhecia dos poucos livros que existiam. Marcello Fragelli, Antonio Carlos Sant’Anna Junior, o João Walter Toscano, toda uma geração que a gente via publicada nos poucos livros que tínhamos, um guia de arquitetura de São Paulo e também um livro sobre as casas paulistas, que tinha uma casa de cada um deles, da Marlene Acayaba. Foram os arquitetos que nos formaram.
O Paulo ganhou o Prémio Pritzker, a medalha do RIBA (Royal Institute of British Architects), o Prémio Imperial do Japão, mas, naquele momento, ainda era mais um entre tantos. No primeiro número da revista Caramelo tem uma entrevista com o Paulo em que a gente publica, pela primeira vez, o projeto dele para o concurso do Centro Georges Pompidou, que foi finalista. Ele foi finalista! Vamos dizer, daquele mundaréu de gente, passaram no final alguns poucos projetos para a última lista, consta que ele teve um voto. Ganhou, como todo mundo sabe, o projeto do Renzo Piano e do Richard Rogers, mas é um projeto que era já incrível. E, desde então, todos os números tinham o Paulo, escrevendo sobre trabalhos que ele coordenou ou orientou, depoimentos dele – no número quatro a gente fez um caderno especial da Lina Bo Bardi e tem um depoimento dele. Incrível, porque, até aquele momento, ainda existiam essas coisas, o Paulo não falava da Lina, a Lina não falava não sei de quem… Ele fez um depoimento sobre a Lina que, até hoje, eu leio e fico emocionado. Mas, quando a gente fez a publicação, no primeiro número da nossa revista, não imaginam a quantidade de gente que reagiu falando “Vocês começaram péssimos. Começaram com uma coisa que já passou. Isso é antigo, já era.”
Ainda era um momento em que o pós-modernismo, muito mal entendido no Brasil, se defrontava ao Paulo, como se fosse uma contraposição, vanguardista, de um rescaldo, de uma coisa que não existia mais. Para nós, era uma piada, inclusive. Ainda bem que a gente não ouviu essas pessoas, que eram mais velhos do que nós, e que tentaram fazer tudo para que a gente não pensasse com a nossa própria cabeça, e seguimos entrevistando e nos aproximando do Paulo. Para vocês terem uma ideia, quando escolhemos o Paulo para nos orientar o trabalho final de graduação, ele tinha muito poucos orientandos. Com alguns outros professores as pessoas faziam fila, dormiam à noite na FAU para se inscrever, e o Paulo… As pessoas ou tinham um receio, ou achavam que já era passado, ou tinham um pouco de medo do jeito dele – e perderam essa oportunidade. Para a gente, o Paulo era assim um cara sentado num atelier, meio sozinho, e você em volta, ouvindo ele falar coisas absolutamente extraordinárias.
[CM] – Vocês podem imaginar, ele sentava e ficava falando…
[FV] – Se fosse hoje ia ter não só estudantes brasileiros, como estudantes do mundo inteiro em volta dele, apinhados, você não ia nem conseguir ouvir. Mas nessa altura era assim, um a mais lá na escola, dando os palpites dele. E tudo o que você queria é que ele olhasse o seu desenho e ficasse comentando – e ele nunca fez isso. Ele nunca faria. Os desenhos dos estudantes eram simplesmente uma provocação para ele falar da vida, do planeta…
E, pouco tempo depois, vão ser fundadores da Escola da Cidade. Como foi feita essa transição do ensino para o ensino, em que passaram de alunos para professores? Como é que a escola surgiu? Saem de outra escola e formam uma nova, não é?
[CM] – Exatamente. O Ciro Pirondi era o diretor de uma escola de arquitetura na cidade de Mogi das Cruzes, perto de São Paulo. Quando assume a direção, ele vai convidando várias pessoas e vai transformando o curso dessa faculdade num curso muito diferente de todos os cursos que existiam, ou que eram mais comuns, que tinham uma estrutura sempre muito pautada pela da FAUUSP.
Estamos em que ano Cris?
[CM] – Em 1995, 1996. Quando o Ciro é demitido da direção dessa escola, os professores todos se demitem e saem em massa e começa então a ideia da formação da Escola da Cidade. Em 2022 faz vinte anos da primeira turma da escola e vinte e cinco anos da associação.
[FV] – Eu acho que essa transição da FAU para a Escola da Cidade revela um pouco os modelos e a forma das escolas. A escola de São Paulo, que tem gente que chama de escola paulista, ela não é um estilo de fazer arquitetura. O que acontece são transições geracionais, de uma maneira gradual – que eu acho bonito – não precisou ter rompimentos geracionais. Quando o Artigas, que já era o grande professor da FAU, faz o concurso do ginásio do Clube Atlético Paulistano, perde para o Paulo e o segundo lugar é do Pedro Paulo de Mello Saraiva. E, em vez de romper com esses meninos, os convida para serem assistentes dele. O que eu acho é que existe sempre essa ideia de construção de escola, um pouco diferente entre São Paulo e Rio de Janeiro. O Oscar Niemeyer nunca deu aula. Em São Paulo, o Artigas é o fundador da escola, ele constrói o edifício e o plano de ensino. Quando a gente entrou na FAU, essa ideia de que essas transições poderiam ser feitas de maneira delicada, generosa, entre as gerações, era quase parte da própria profissão. Ou seja, a gente sempre imaginou que parte do nosso trabalho de arquitetos era também um pouco em continuidade dessa formação que a gente teve.
[FV] – E aquele edifício, tão transformador, é um edifício em que a própria arquitetura é uma aula, é muito potente e dá-nos uma régua para medir o mundo. Se uma nuvem passa no céu, o prédio fica escuro. Se chove, ele fica barulhento. Se venta, venta lá dentro, passam andorinhas voando por cima do estúdio. É uma escola que não tem portas, ela é aberta e é a própria vida. Você entra e sai totalmente transformado seis, sete anos depois. Você entra um menino e sai com outras perspetivas.
Mas porque é que sai transformado? O que é que a escola traz de novo?
[FV] – Há uma coisa independente dela, que é o facto de ser uma universidade pública. Num país como o nosso, é revelador. Eu estudei numa escola particular. Você entra naquele universo, convivendo com pessoas tão diferentes, te coloca num mundo público que, de facto, te transforma – ainda mais para um jovem no Brasil. Também o próprio edifício, em que tudo o que você faz está de alguma forma transformando o espaço, o som do espaço, e interfere na vida do outro, são formas de convivência que te educam. O edifício da FAU é um instrumento. Qualquer pessoa que viveu naquele edifício, se você vendar os olhos e entrar, sabe que está no prédio da FAU, só pelo som.
E em relação à Escola da Cidade?
[FV] – Eu acho que, do mesmo jeito que a gente tinha o compromisso com as gerações mais velhas, a gente também sabia que tinha de passar essa bola para os mais novos: o entendimento de escola enquanto continuidade. Nós, por profundo amor à FAU, fizemos a Escola da Cidade. A FAU, dentro de todo o sistema universitário, começou a ter certos engessamentos, que são naturais numa instituição muito grande, onde o professor só pode dar aula a partir de uma vida académica ou do doutoramento. Deixava de fora grandes arquitetos, que não podiam mais dar aula na FAU, que não podiam ser professores. A Escola da Cidade tentou construir um lugar de uma certa liberdade, a partir do que foi o desdobramento dessa escola paulista. E se for pegar os exemplos dos professores que estão connosco, que não poderiam dar aula na FAU, porque não são doutores, vai ver a importância que a escola começou a adquirir. A Marta Moreira, do MMBB, o Francisco Fanucci, da Brasil Arquitetura, o André Vainer, que é coautor do SESC Pompeia, o Guilherme Paoliello, o Vinicius Andrade, que fez o projeto do Instituto Moreira Salles, quanta gente que está na escola não poderia ser professor da FAU por ter uma prática profissional e não ter doutoramento. Então, eu acho que esse frescor da Escola da Cidade foi feito não no sentido de competição, mas no sentido de colaboração e de dar continuidade aos ensinamentos da própria FAU. Isso é muito bonito. A escola que mais coloca gente no mestrado da FAU é a Escola da Cidade. O que a gente na Escola tentou fazer é: já que não temos o edifício do Vilanova Artigas, nós temos o centro da cidade de São Paulo. O edifício da FAU é lindo, mas fica absolutamente isolado, num campus para lá do rio, numa situação que, evidentemente, era de logística da ditadura militar, que era botar os estudantes do outro lado do rio. No nosso caso, a Escola, o próprio nome diz, Escola da Cidade, é fazer com que o aprendizado da arquitetura seja feito no centro da cidade, com que a escola se espalhe pela cidade. Não existe um bar, uma cantina, dentro da escola – é o restaurante da esquina.
E do ponto de vista do modelo do curso, o que é que acrescentou, em relação ao da FAUUSP?
[CM] – É importante falar do projeto pedagógico da escola porque, de facto, ele é um projeto diferente do projeto da FAUUSP. Primeiro, ele organiza um período integral, das duas às oito e meia da noite, com as manhãs livres. Isso já cria uma situação de tempo muito distinta, que permite também que se trabalhe, que você tenha outras atividades, o que na FAU é impossível. É um projeto que procurou entender que se aprende muito com o lugar, onde a obra está. Temos dentro do curso duas atividades, a Escola Itinerante e a Vivência Externa, duas atividades obrigatórias, momentos em que estudantes estão fora da escola – aprendendo com professores, com os edifícios, com a cidade -, mas em outros lugares. É um programa que varia a cada ano, também em função das condições. A ideia da escola ser uma escola andante, uma escola que caminha, é muito mais rica do que você estar somente fechado dentro de algum lugar.
[CM] – A Escola Itinerante acontece do primeiro ao quarto ano, eles saem durante uma semana para visitar, ter aulas e visitas, junto com os professores da escola, encontrando-se no lugar com professores e profissionais, com os autores. Pode acontecer dentro do Brasil, já foi para o Rio de Janeiro, Minas Gerais, interior de São Paulo, para a Bahia, para Pernambuco, Amazónia, mas também para fora do Brasil – Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai, Colômbia, México, Peru. Já aconteceu em muitos lugares diferentes. Então isso é essa Escola Itinerante, que é sala de aula que caminha.
O outro programa é a Vivência Externa. A Escola da Cidade começou o curso com cinco anos, que é basicamente o programa das escolas de arquitetura no resto do Brasil, mas atualmente tem seis anos de duração. Dentro do curso, nós incluímos essa experiência que é um intercâmbio de estudo em alguma outra universidade, durante seis meses, ou um estágio, porque também nós sempre sentimos que na experiência profissional você pode ter experiências aprofundadas de trabalho. E então inserimos essa experiência, o estágio obrigatório pelo Ministério da Educação, colocando esses estudantes para ter experiências profissionais ricas em tempo integral com duração de 6 meses, uma bagagem importantíssima. Ter transformado o curso em seis anos tem um custo maior, leva tempo; no entanto, nós sempre tivemos muita procura, acho também há um entendimento de que o valor disso é muito grande.
E temos ainda o Estúdio Vertical, uma prática em que a escola é completamente pioneira, que é colocar estudantes juntos, de diversos anos, para trabalhar num projeto muito experimental, a escola inteira, durante um semestre. De forma permanente! quinze, vinte professores – depende do semestre -, orientando, fazendo esse programa. Durante três anos, é obrigatório para os estudantes, três horas, três dias por semana, a maior carga horária da escola.
Isso é muito bonito, porque eles aprendem com os professores e entre eles, não é?
[FV] – Gera uma escola muito coesa. O tempo inteiro você está com estudantes de todos os anos. Que é um pouco o que a gente viveu, naquela semana muito intensa em que fizemos o Estúdio Vertical no Da/UAL, em 2021.
Isso remete muito possivelmente para um perfil de aluno que acaba por ser diferente de outros, de outras escolas no Brasil. Quem são os alunos que vos chegam? Vêm de todo o lado do Brasil, vêm da cidade, de São Paulo?
[FV] – No começo, os alunos eram os filhos de conhecidos que apostavam numa escola que estava começando, num prédio abandonado na Boca do Lixo. Isso, evidentemente, construiu um lado romântico de um perfil de aluno que vinha disposto, livre, aberto para um lugar diferente, e construiu um pouco o perfil da Escola. Mas essa construção é muito bonita porque, conforme os anos foram passando, em vez de ficar restrita, se criaram muitas redes de intercâmbio, recebemos muitos alunos da América Latina, colombianos, argentinos – e também portugueses. E houve uma tentativa permanente, desde o começo, de construir uma escola que pudesse incluir estudantes que não têm como pagar uma escola privada no Brasil. Isso foi um esforço enorme, um esforço institucional. Até hoje temos um conselho social que está lá só para isso e que vem se ampliando. A gente não tem grana de fora, nenhuma. Toda a grana arrecadada é das mensalidades, dos estudantes, das parcerias que fazemos, dos cursos de pós-graduação, dos cursos livres, mas é assim que a gente administra; a gente paga o aluguel do nosso espaço fazendo as reformas do edifício que são tão importantes para nós, mas com grana do próprio proprietário. E conseguimos, com nossos esforços, dar vinte por cento de bolsas hoje na Escola, é uma percentagem grande.
Imagino que essa perspetiva mais inclusiva seja tão determinante para os alunos que são beneficiados como para os outros?
[FV] – Os dois crescem muito. Inclusive começámos a conseguir colocar estudantes que têm outra formação, que vêm de outras classes sociais, que trabalharam na adolescência ou que estudaram em escolas públicas, que vêm muito mais maduros, com garra enorme para fazer a escola, apesar de algumas deficiências de formação. Mas às vezes essa inclusão pode trazer certos preconceitos, no desenvolvimento do curso essas dificuldades apareceram de forma gritante. Por isso, nós inaugurámos já há dois anos uma escola de ensino médio, com crianças de quinze a dezassete anos que estudam connosco antes. É um curso que equivale ao nosso colegial, ensino médio, secundária. O estudante, depois, pode escolher a profissão que quiser, mas pode continuar connosco na escola. A primeira turma se forma no final de 2022. A gente consegue com bolsas e patrocínios externos colocar esses estudantes no secundário na escola; quando eles entrarem na graduação vão ser os mais bem formados e terão vivido o centro da cidade, vão ter uma formação invejável diante dos outros que tiveram a oportunidade de estudar em escolas privadas. A escola já está mudando e a partir do ano que vem a mudança vai ser ainda maior, ainda se invertem os papéis. Vão ser grandes estudantes de arquitetura.
Acho que pode dizer-se que a génese e o ADN da Escola da Cidade é sempre o pensar numa troca, num diálogo. Começa com o diálogo com a cidade, instala-se no centro da cidade, e agora essa troca entre os alunos.
[FV] – A Escola é feita para os estudantes, mas ela é feita também para nós. É esse grupo de amigos arquitetos e pesquisadores – porque hoje em dia a Escola também é uma escola de pesquisa. Mas essa ideia da escola para nós pensarmos, para aprendermos com os estudantes, para nós, professores, estarmos juntos e pensarmos o lugar nosso no mundo, isso me parece uma coisa importante de ser dita. Começa com a reforma desses dois edifícios, nos quais estamos, que eram edifícios de habitação feitos pelo arquiteto Oswaldo Bratke da década de quarenta, e que fomos transformando, paulatinamente, com a participação dos estudantes, fazendo workshops de transformação. No curso de pós-graduação que há treze anos eu e o Álvaro Puntoni coordenamos, há uma tentativa da gente pensar, também, o nosso lugar no mundo – e eu acho isso bonito como um pensamento de arquiteto.
[CM] – Eu acho que vale a pena mencionar uma disciplina, um curso, que é o Seminário de Cultura e Realidade Contemporânea. É uma disciplina obrigatória, acontece na quarta-feira, que é o meio da semana, e é o momento onde se discutem questões e temas de interesse atuais de uma forma muito ampla, olhando para a sociedade, com os problemas reais e que vêm acontecendo, com as reflexões que são feitas a partir daí. Em geral, não são arquitetas e arquitetos que vêm nesse dia, são médicos, biólogos, músicos, artistas, historiadores, antropólogos, arqueólogos…
Cris, acho que está na altura de poderes falar do teu papel como atual diretora da escola. O que pretendes acrescentar à própria vida da escola?
[CM] – Eu estou na direção do curso da graduação desde 2019 junto com a Maira Rios. Em 2014, o Ciro me convidou para criar um curso de pós-graduação sobre o ensino de arquitetura, sobre a formação dos arquitetos. Eu convidei a Maira, professora da escola, para fazer comigo essa coordenação e a ideia era nós fazermos uma discussão sobre como se ensina e como se aprende arquitetura. Era um curso organizado através de convidados. É muito interessante ver toda essa lista de gente, que veio trazer as experiências de outros projetos pedagógicos, experiências de outras escolas, dentro e fora do Brasil. Era tudo presencial, e foi muito importante para uma transformação que a partir daí aconteceu na Escola. Porque a primeira turma foi composta de trinta professores da Escola, não foi aberta ao público. Foi para esses professores, que muitas vezes não tinham nenhuma outra diplomação além de sua graduação, que a Escola ofereceu esse curso para fomentar uma discussão, uma reflexão sobre o ensino e a aprendizagem, e esse foi um momento de iluminação.
Se tornou um fórum de discussão sobre a Escola, porque todos eram professores, todo o mundo já tinha muita experiência, mas nunca tinha estudado teorias ou educação ou pedagogia, foi muito rico então. Depois desse curso, que fiquei cinco anos coordenando, saí para ingressar na diretoria. O curso é hoje um lugar onde as pessoas procuram uma iniciação de sua formação como professores. Tem sido muito interessante, e em geral os professores assistentes, que estão temporariamente na Escola, fazem esse curso.
A grande transformação aconteceu em 2019, quando a Escola ganha um colegiado para dirigi-la. Essa é uma grande mudança; são dez diretores, cinco homens, cinco mulheres, que estão coordenando – cada um dentro de uma área, porque a Escola cresceu muito nesse tempo -, mas que partilham todas essas discussões e decisões, em reuniões muito frequentes. A gente se encontra no mínimo uma vez por semana, reuniões longuíssimas, onde acontece esse desenvolvimento da escola. A gente tem uma tarefa grande, que é institucionalizar diversas áreas e procedimentos que foram muito experimentais, que foram feitos de forma a fazer com que aquilo pudesse acontecer, e que muitas vezes são muito personalizados. A gente tem um desafio que é imaginar que nós não estaremos lá logo mais, e que essa estrutura tão importante tem que se fortalecer e continuar sozinha.
A relação com a cidade e com a sociedade é um outro desafio, pensar quem são esses estudantes, esses jovens profissionais que a gente está formando. O campo ampliado da nossa profissão é muito grande, a gente quase não consegue hoje listar tudo. São coisas que há vinte anos a gente não imaginava, tipos de atuação que vão se reinventando. E eu acho que a Escola também tem esse papel, de propor e de fazer com que esses campos se ampliem e se abram. Há dois exemplos que acho que são importantes dessa nova forma de atuação. Um deles é o desenvolvimento, dentro da escola, de um projeto do SESC, o SESC Campo Limpo, que já está sendo feito há 5 ou 6 anos, dentro de uma estrutura pedagógica. Como é que a gente rebate isso para os estudantes, para os professores? Como é que todo mundo pode se aproveitar disso e não ser uma reprodução de um escritório? Eu acho que isso é um desafio, pensar em todas as pesquisas que podem ser feitas e alimentar o trabalho, o projeto, que ao mesmo tempo, deve se construir de forma autónoma. O bairro do Campo Limpo é muito conhecido, existem muitas ações culturais pontuais, separadas, que uma estrutura como uma escola pode agregar. A gente fez uma cartografia destas ações e procurou essa interligação através de um grande programa que é o SESC, fazendo workshops e discussões na Escola toda; não é um projeto que tem uma autoria de uma pessoa, mas de uma escola. E, agora, o projeto com o município de Diadema também é um exemplo dessa forma diferente de fazer, quando o poder público procura a Escola, que tem possibilidades de desenvolver determinados projetos. O Estúdio Vertical, por exemplo, trabalhou no primeiro semestre inteiro desenvolvendo estudos para diversas áreas de Diadema. Uma outra disciplina, do quinto ano, o Exercício Único, que congrega tecnologia, projeto e desenho, também trabalhou sobre essas áreas de Diadema. São fóruns de discussão, espaços de reflexão dentro da escola, existe uma contribuição muito grande, que é entender o projeto como uma pesquisa.
Vocês vão ao encontro dos poderes públicos ou eles vêm ao vosso encontro?
[FV] – Vieram através de próprios professores; no caso de Diadema, temos um grande professor de urbanismo, Mário Reali, que já foi prefeito de Diadema, e que procurou a Escola, porque ele não tinha um corpo técnico para fazer toda a reflexão.
No fundo, é uma premissa para outras coisas que podem vir a acontecer?
Vocês também propõem projetos?
[FV] – Sim, a quantidade de caminhos para se relacionar com a sociedade civil e com os poderes públicos é enorme. Vou dar um outro exemplo: uma grande construtora brasileira foi autuada, condenada na justiça, por ter empregado trabalho considerado análogo ao escravo no terceiro terminal do aeroporto de São Paulo. Tiveram que pagar uma multa, e ainda responder um Termo de Ajuste de Conduta, ou seja, uma reparação, por parte da empresa, fazendo um grande trabalho público. Algumas dessas reparações são feitas através da educação. Nós estamos credenciados, por sermos uma escola privada, mas de interesse público, a prestar esse serviço. Então, o dinheiro dessa multa financiou uma grande pesquisa que envolveu publicação, workshops, discussões sobre o que significa o trabalho análogo ao escravo, hoje, na construção civil em São Paulo. Foi uma enorme pesquisa de um ano de duração, com muitos professores e estudantes envolvidos.
Deixa fazer uma pergunta um pouco subversiva. Também são procurados pela iniciativa privada?
[FV] – Antes de responder, quero falar de como isso tem rebatimento na própria forma como essa geração de arquitetos da Escola está fazendo arquitetura. A nossa geração voltou, depois de muitos e muitos anos, a fazer projetos para o mercado imobiliário em São Paulo. Existiram gerações que se negaram a fazer isso, do ponto de vista ideológico do que era aquele momento. E a cidade foi sendo feita. A nossa geração achou que, mesmo com todos os problemas, é melhor fazer do que não fazer. Todos os professores da Escola estão fazendo edifícios que estão construindo os tecidos da cidade. Alguns grupos privados, ligados ao mercado imobiliário, estão nos procurando justamente para tentar fazer um fórum de discussão que aproxime esses mundos, que foram tão apartados. Agora a gente está desenvolvendo um curso que vai discutir as questões urbanas envolvidas num empreendimento privado de mercado imobiliário. Sim, estamos também tentando construir essas pontes para todo o lado.
Cris, a tua experiência na pós-graduação foi determinante para agora seres diretora? Ou seja, de algum modo, essa reflexão sobre aprender e como ensinar, levaste-a contigo e com as pessoas que trabalham junto a ti, para a diretoria?
[CM] – Sim, esse curso possibilitou muitos entendimentos do que é essa construção, que é coletiva, do conhecimento. Um entendimento, em primeiro lugar, de que educação não é transmissão de conhecimento, mas uma construção cultural, de algo que é novo para todos, para o professor, para o estudante. A ideia de que você ensina o que você não sabe, o que ainda não sabe. Aquela construção vai ser elaborada, coletivamente.
Acho que esse entendimento é um pouco diferente do que existia antes, e isso é algo que vem se consolidando nos últimos anos. É um entendimento da autonomia do estudante que vai construir seu percurso. Então estamos fazendo alguns ajustes, chamados de aprimoramentos pedagógicos, para criar mais possibilidades de escolha dentro do curso, onde as eletivas vão ter mais espaço.
As eletivas são as opcionais?
[CM] – Exatamente. Apareceram disciplinas opcionais quando o curso passou a ter seis anos. O que a gente foi fazendo foi trazer para o quinto, para o quarto e agora, nesse momento de pandemia, até o primeiro ano, e foi incrível essa experiência.
Isso que falamos das novas práticas e que vai se construindo dentro do corpo de professores, mas que convoca os estudantes, se espalha de uma forma muito rápida. Tem vários exercícios dos estudantes do Estúdio Vertical, ou do Exercício Único do quinto ano, que são ações em que os estudantes, em grupo, se juntam e vão a uma determinada comunidade buscar as questões que querem ou podem desenvolver.
É uma contaminação?
[CM] – Eu acho que tem algo também bonito de se pensar que é o modo como essa escola vem reorganizando as representações. Quando formámos o colegiado, em 2019, a representação dos estudantes também se ampliou muito. Em todos os âmbitos, em todos os conselhos, em todos os núcleos tem sempre muitos estudantes – e isso também é um aprendizado para nós e para esses estudantes: como é que você não fala só de você, mas traz essa voz do conjunto? Isso também tem sido muito interessante, é uma escola que vai se procurando mais democrática, mais aberta, e é sempre difícil esse caminho, ele não é simples.
Podemos agora mudar da Escola para o atelier? Contem-nos um pouco como o atelier começou, quando e como aconteceram os primeiros trabalhos.
[FV] – Sempre houve tentativa dessa construção feita de forma coletiva. Desde a Caramelo, os grupos que a gente formou, nunca fizemos nada só nós. Então, seja o grupo da Caramelo, seja a forma com que a gente organizou o atelier, seja a vontade de trabalhar em grupo nas escolas – sempre o que nos motivou foi isso, muito mais do que uma visão de um artista genial, isolado. Nesse sentido, o atelier nasceu de um desdobramento desse grupo de estudantes da Caramelo; era um grupo maior, que se desdobrou em alguns grupos. Era um grupo grande, quando começou era um grupo de umas onze pessoas, que se desdobraram em alguns estúdios. Quando a gente terminou o curso, no último ano, fizemos uma viagem num grupo de amigos pela Europa. Quando voltamos, cada um de nós trabalhava num estúdio de um professor, fomos nos espalhando pelos escritórios desses arquitetos um pouco mais velhos do que nós, que já estavam estabelecidos. E, ao mesmo tempo, começou a surgir a vontade de continuarmos como grupo, a produzir. Então alugámos um pequeno cómodo dentro de uma pequena casinha na Vila Madalena, era um quarto dentro de uma casinha. Nesse lugar, começámos a fazer uns pequenos projetos. No primeiro ano, mandámos o único projeto que tínhamos para um prémio de jovens arquitetos e fomos premiados. No ano seguinte, a gente participou num concurso que era um centro de pesquisas agrícolas, uma escola rural, e ficámos em segundo lugar. Aquilo nos animou muito e em seguida fizemos o concurso para a transformação do edifício dos Correios e Telégrafos de São Paulo, para o transformar num centro cultural e, para surpresa total de todos, num concurso de duas fases, a gente ganhou o concurso. Aquilo permitiu que todos saíssem desses outros escritórios.
Nessa altura, já era UNA arquitetos, certo?
[FV] – Já era UNA arquitetos. Quando montamos o primeiro grupo éramos sete pessoas. Depois, o Fernando Nigro Rodrigues saiu e nós montámos a empresa com seis, éramos Cris, eu, o Fábio Valentim, a Fernanda Barbara, a Ana Paula Pontes e a Catherine Otondo. Fizemos o concurso dos Correios, ganhámos, e o escritório se formou.
Foi em que ano?
[FV] – Em 1996. Tivemos que contratar vinte equipas de complementares, e coordenar um “projetão”, com todas as aprovações, e foi incrível, porque foi dando tempo para chegar em outras demandas, outros projetos nasceram desse, e não saberia nem dizer a loucura que é você manter um escritório – quando você acha que não tem mais o que fazer, aparece mais uma coisa e você vai adiando terminar o escritório e estamos assim até hoje.
Esse primeiro concurso foi aquele que vos abriu portas para a encomenda?
[CM] – Ele estruturou o escritório, deu essa possibilidade de experiência num trabalho desse porte, que a gente nunca podia imaginar, todos esses profissionais trabalhando juntos. Ele credenciou esse grupo a fazer outras coisas.
Foi nessa altura que mudaram para a Rua General Jardim, em Higienópolis?
[CM] – Foi em 2003. Um pouco depois dos Correios, no momento em que os filhos estavam nascendo.
[FV] – Essa questão é importante, o espaço onde a gente trabalhou, porque esses primeiros trabalhinhos foram feitos nessa casinha que a gente alugava ali na Vila Madalena. Só que, logo depois, vem um convite, do Antonio Carlos Barossi,- que foi nosso professor. Na época dele como estudante na FAU, nos anos setenta, eles ocuparam um galpão [armazém] na Vila Madalena, uma antiga oficina, um grupo que era meio uma comunidade, eles moravam e trabalhavam, e toda uma geração, que são hoje arquitetos de 65 anos, foram passando por esse espaço. A Vila Madalena ainda era um bairro muito à margem, era muito uma vila, onde tinha um movimento muito forte ligado ao samba, ligado a uma boémia, era um lugar experimental, e no caminho da FAU, entre a cidade e a FAU. Ele nos convidou para dividir esse espaço com ele, era um espaço grande, a gente pôde inclusive contratar estagiários, jovens arquitetos, para trabalhar connosco – e esse espaço foi ficando connosco, a ponto do Antonio Carlos Barossi sair e deixar o espaço connosco. Ficamos trabalhando lá até 2003, quando veio o convite do Paulo Mendes da Rocha para fazermos com ele o projeto das Olimpíadas em São Paulo, que foi uma colaboração que o nosso escritório fez junto com outros escritórios. Compusemos um grupo de cinco estúdios junto com o Paulo, fizemos um trabalho num tempo recorde de três meses. A gente começou o trabalho na Vila Madalena e terminou em Higienópolis; o nosso primeiro filho nasceu em 2002, e a gente se mudou para lá, e faz toda a vida do escritório perto da casa, perto das escolas das crianças, e perto da Escola da Cidade.
Então no fundo, isto é quase um círculo? Encontrar na FAU o Paulo Mendes da Rocha e, depois, o Paulo Mendes da Rocha encontrou-vos a vocês e acabaram por ancorar o vosso trabalho a partir daí. O Paulo continua a ser uma espécie de figura tutelar no meio deste caminho.
[CM] – Ele foi muito presente, em muitos momentos. Nesse concurso dos Correios, na segunda fase, nós estávamos com muita dúvida de que a gente pudesse ganhar e nós chegámos a conversar isso com o Paulo – e ele veio ao nosso escritório fazer uma visita. Ele apareceu para ver o que a gente estava fazendo e a gente fez um ensaio sobre o que seria a apresentação. Já estava perto da entrega, era uma apresentação pública, a última etapa, e ele viu esse ensaio. E foi fundamental, fez comentários que transformaram, a gente mudou várias coisas. Foi sempre muito próximo.
[FV] – A gente nem acreditou, sabe? Essa generosidade dele aparecer, a gente nem sabia se ele sabia que a gente estava nessa segunda fase. E ele estava de olho, no fundo. Isso é uma coisa muito bonita, de um professor.
Vocês tinham consciência de que o vosso trabalho era diferente dos outros?
[FV] – É uma pergunta difícil mesmo. Eu acho que nós entendemos que o nosso discurso fazia sentido não como uma coisa própria, só de um refinamento de uma linguagem ou de um campo disciplinar, e entendemos que havia uma potência nessas diluições dos campos e das escalas entre urbanismo, planejamento, arquitetura ou design. Pegar num edifício preservado, do começo do século, eclético, pesadão, e suspender para a cidade passar – fazendo conexão com todas as cotas da cidade – foi de fato muito revelador, marcou a nossa formação como arquitetos. Essa ideia das praças públicas, das vielas passarem por dentro da arquitetura, a gente perseguia isso, sabia que isso era um campo fértil para a construção de um discurso. Mas escolher os detalhes dos materiais, construir o dia-a-dia da profissão, que são mil tomadas de decisão por dia, isso acho que a gente foi aprendendo aos pouquinhos. Claro que o fato de estar em grupo ajuda a pensar, mas não como um corpo único ou formal. Sempre entendemos que o nosso trabalho ia nascer muito menos de uma estratégia formal e muito mais dessa dinâmica de diálogos e de discussões, que poderiam se revelar no final do processo, mas nunca antes. Eu quero também falar da importância que teve, para nós, o olhar externo, porque ele te ajuda a pensar e confere responsabilidade ao teu fazer.
E qualquer proposta tem de ser muito bem fundamentada, o que vos obrigou, desde o início, a ouvir os outros. E tudo o que é proposto, é proposto com uma reflexão e com uma justificação, uma reflexão, um pensamento teórico com pesquisa por trás, sempre a trabalhar em coletivo.
A questão do coletivo em que vocês insistem, que na verdade, é uma espécie de convocação do espaço público sempre muito presente nos projetos, mesmo naqueles que são privados – o concreto [betão] como um dos materiais importantes que é trabalhado. Há um conjunto de constantes que são permanentes no vosso trabalho.
[CM] – Sim. Isso para nós é muito claro, porque as géneses são muito diferentes em cada projeto. Às vezes, pode parecer que o concreto é muito presente, que existe essa procura por uma expressão do concreto aparente, essas estruturas que já são a própria forma, que já são o próprio edifício. Na verdade, temos um entendimento de que existe sempre uma reação, de que existe sempre algo que te provoca e que está antes de nós. Então, entender o que existe antes é uma questão importante para nós. O que é que esse lugar, em todas as condições que envolvem cada projeto, te pergunta? O que é que esse lugar te indica, te diz? Não é um contextualismo, não é essa a questão, é a ideia de entender o que existe, e que sempre existe. A cada situação, a gente vai procurar encontrar uma resposta adequada ou a que mais se ajusta. Sejam sistemas construtivos, seja a forma como toca o chão, seja a forma como se relaciona com todos os elementos vizinhos, o clima, como isso se abre, se protege ou aparece, e do uso em si, que também é cambiante, que também não é estático. A gente entra em cada projeto sem saber o que vai ser, sem saber qual vai ser o resultado, o que vai acontecer ali. Vai depender de muitas questões que vão moldar esse projeto. Acho que é uma procura inclusive. Porque é assim que se dá. As condições não são as mesmas.
Se vocês tivessem de escolher o projeto que mais gostaram de desenvolver, de construir, qual seria esse projeto?
[CM] – Eu nem consigo fazer listas dos cinco filmes, das cinco músicas… quanto mais conseguir eleger um projeto que eu já fiz…
Mas, refletindo sobre essa pergunta, podemos dizer que o projeto dos Correios nos moldou muito, aprender a coordenar um grande projeto, dotar de escala urbana a própria arquitetura, tudo isso foi essencial. Depois fizemos uma Escola pública em Campinas, um equipamento público na periferia da cidade, a construção e industrialização como essência no projeto. E ainda o plano urbanístico para os bairros Mooca e Ipiranga em SP abriu caminhos para nós em relação a questões de escala metropolitana e nos fez sistematizar determinadas estratégias entendendo o papel das infraestruturas como desenho de cidade, a permanência e a memória urbana, o patrimônio industrial. E ainda um outro momento importante posteriormente foi desenhar um edifício residencial para o mercado imobiliário, a regra da cidade, que foi o edifício Huma Klabin. Ali ensaiamos algumas pequenas contribuições na escala das gentilezas urbanas, que se desdobraram, depois em outros projetos.
O projeto dos Correios parece ser um escolhido. É um projeto muito marcante para vocês…
[FV] – Foi muito marcante, ele é muito formador, mas nunca se completou, a verificação de toda a potencialidade dele ficou em suspenso. Ele se completou, para nós, como raciocínio, como formação, mas o desdobramento dele para a cidade como obra não se completou. Nesse sentido, não pode nunca ser esse. O projeto que mais me emociona é o próximo, no município de Diadema, que a gente vai fazer na Escola da Cidade, um trabalho total com a comunidade, de resistência, na periferia mais pobre do centro expandido de São Paulo. Eu estou muito esperançoso que esse trabalho de Diadema vai ser o nosso trabalho mais importante.
Muito obrigado.
Fotos © Gonçalo Henriques + Estudo Prévio
João Belo Rodeia
Arquitecto. Professor Auxiliar no Da/UAL
Bárbara Silva
CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, Portugal.
Diretora da Galeria de Arquitectura NOTE, Lisboa
For citation: RODEIA, João Belo; SILVA, Bárbara – Entrevista aos arquitetos Cristiane Muniz e Fernando Viégas. Estudo Prévio 21. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2022, p. 2-23. ISSN: 2182- 4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/21.1