Há muito tempo se discute a crise da habitação em Portugal e para Martim Guimarães da Costa, que tem centrado a sua intervenção cívica sobre esse assunto, as raízes do problema vão além da escassez de terrenos ou do desequilíbrio entre a oferta e a procura. O verdadeiro desafio, diz o arquiteto e urbanista, está no envelhecimento da população e na falta de mão de obra qualificada: fatores que têm impactos profundos na dinâmica do mercado habitacional. Assim, a solução não passa apenas por construir mais, mas por construir melhor — apostando na reabilitação urbana, em parcerias público-privadas e, sobretudo, em modelos de habitação acessível. No seu entendimento, não basta responder às necessidades imediatas; é preciso projetar habitações que respeitem o contexto social, ambiental e cultural de cada região, promovendo um urbanismo que seja, ao mesmo tempo, sustentável e inclusivo. É nessa interseção entre arquitetura, políticas públicas e as reais necessidades das pessoas que reside a resposta para um futuro habitacional mais justo.
Muito se tem falado sobre as principais causas da crise da Habitação em Portugal e na União Europeia, nomeadamente a escassez de terrenos, mão de obra, materiais, e o desequilíbrio entre a oferta e a procura. Estes são os principais desafios que ajudam a compreender a crise habitacional ou há outros fatores – históricos, socioeconómicos ou culturais – a ter em conta para entender esta conjuntura?
Em Portugal, creio que existem dois problemas estruturais: o demográfico e o educativo. Isso acontece porque temos uma população cada vez mais envelhecida e dificuldade em recuperar níveis de natalidade que nos permita ter pessoas suficientes para formar. As que formamos atualmente não satisfazem as necessidades do mercado. Portanto, pagamos muito por uma mão de obra escassa e pouco especializada.
E que desafios há a superar quanto à habitação?
Diria que temos três desafios a superar. O primeiro tem que ver com a falta habitação pública: só 2% do parque habitacional é público, enquanto na União Europeia a média é de 15%, e a maioria está por reabilitar. Em segundo lugar, entre 1991 e 2015, o número de habitações cresceu 32%, ao passo que o número de famílias aumentou em 22%. Portanto, o problema não está na falta de habitação, mas na falta de habitação acessível. Por último, o crescente endividamento das famílias para acederem à habitação: durante o 25 de Abril, 46% da habitação era arrendada e 54% era própria; hoje, 25% é arrendada e 75% é própria. Para além do fenómeno da falta de habitação para arrendamento, sublinho que daque les 75% que vivem em habitação própria, metade está a pagar uma prestação ao banco. Ora, isto é algo muito relevante, visto que se multiplicou por seis o endi vidamento das famílias para garantir o acesso à habitação.
Alargando o espectro geográfico e sabendo que a esperança média de vida tem aumentado, que a população global tem crescido significativamente, sobretudo nas regiões asiáticas e africanas, a crise habitacional não deveria ter sido antecipada e acautelada de forma mais eficaz?
Claro que a questão da superpopulação humana coloca problemas universais: o esgotamento dos recursos naturais, o aquecimento global e os conflitos armados entre nações. Todos nós sofremos com isso, direta ou indiretamente. Mas se, hipoteticamente, tentássemos resolver os problemas de habitação dos países, como por exemplo no Egito, recorrendo às estratégias, às técnicas construtivas e ao planeamento urbano que caraterizam o Mundo ocidental, seria um erro grave.
E por que é que o seria?
Porque não responderia às especificidades locais. Não existe uma indústria de produção de materiais como a nossa, eles têm uma mão de obra especializa da em outras técnicas construtivas e os sistemas construtivos que utilizamos não respondem às necessidades de confor to térmico desse país. O ditado é antigo: “não é dar o peixe, mas ensinar a pescar”.
Chegados a este ponto, que soluções podem responder aos desafios que se impõem na habitação?
O mais importante é aumentar a oferta de habitação pública: mobilizar os devolutos, sejam terrenos vazios e expectantes; e o património edificado do estado central e das autarquias locais, com a possibilidade de realizar parcerias com privados ou iniciativas público-comuns. Outro ponto a avançar tem que ver com os programas de arrendamento acessível, apoiando jovens e a classe média. É um programa que não tem que atuar sobre todo o município. Pode ser circunscrito a determinadas áreas urbanas, como as centralidades.
Nesse sentido, que estratégias são mais eficazes para promover a habitação acessível e de qualidade?
O passo crucial reside nas revisões dos Planos Diretores Municipais e promover um conceito que chamamos de “densificação estratégica”. Ou seja, permitir majorar os índices e a capacidade construtiva nos centros urbanos quando a edificação seja alocada ao Programa de Arrendamento Acessível, promovendo a contenção urbana em detrimento da sua dispersão. Depois, há a criação dos fundos municipais de sustentabilidade ambiental e urbanística, por forma a fomentar sistemas per equativos, no sentido de criar bolsas de terrenos em áreas privilegiadas nos centros urbanos para a promoção de habitação ou de parcerias com vista à criação de respostas habitacionais a preços acessíveis. Por último: a elaboração das Cartas Municipais de Habitação. Isso servirá para que os municípios tenham acesso prioritário aos fundos do “Portugal 2030”, em matérias de habitação e de reabilitação urbana, e também para criar um instrumento de planeamento no quadro dos planos diretores municipais que permita articular o diagnóstico das carências habitacionais das Estratégias Locais de Habitação com os Instrumentos de Gestão Territorial dos respetivos municípios.
Atendendo a esses mecanismos, como avalia as atuais políticas públicas para responder à crise da habitação em Portugal?
A ideia de simplificar é boa, mas o que está a acontecer é o inverso. E isso acontece porque decidiu-se simplificar na estrutura e nos procedimentos, sem mexer no conteúdo. A título de exemplo: já existiam, entre municípios, interpretações distintas sobre o cálculo de índices urbanísticos, como a área bruta construtiva e para a área de implantação. Em primeiro lugar, devia se ter uniformizado os planos diretores municipais e os regulamentos municipais, o que não aconteceu. Portanto, a simplificação, a existir, deveria ter partido daquilo que são os conceitos básicos e ir avançando gradualmente…
Mas, pelo que diz, isso não aconteceu…
Pois não. Temos uma nova portaria que ainda pede mais elementos e mais informação aos técnicos, o que, naturalmente, levará a que mais casos colidam. Depois deu-se este deslocar da responsabilização das autarquias para os técnicos que submetem os processos, alegando que seria necessário reduzir o controle prévio, por forma a aumentar a fiscalização das autarquias. No entanto, os preços dos projetos não subiram para compensar essa responsabilização nem o mercado tem a capacidade de pagar todo esse trabalho e responsabilização acrescida.
Num artigo que publicou defende que as cooperativas de habitação poderão ser um parceiro estratégico do Estado para responder, a médio-longo prazo, a esta problemática, embora deva ser acautelado um conjunto de fatores.
De que modo estas cooperativas podem ajudar a garantir e promover o direito à habitação?
Bom, existe um projeto de habitação cooperativa, em Barcelona, que se chama “La Borda”, que costumo usar como referência. Sucintamente, a administração pública cedeu terreno e foi criado um fundo, onde os cooperantes, e quem queira apoiar para ter acesso a um conjunto de serviços, pagam uma quota – e não uma renda. É interessante olhar para este modelo habitacional e perceber como o espaço foi organizado: ao nível do rés-do-chão foram colocados os espaços comuns, cozinhas e lavandarias; nos pisos superiores estão os apartamentos, constituídos por quartos, instalações sanitárias e salas de estar com pequenas cozinhas. E há ainda outro dado curioso: não se limitaram a fazer habitação. Fizeram outras duas coisas: espaço público, que valoriza, e pequenas unidades de comércio, para que possam ser arrenda das e, com isso, gerar autofinanciamento.
Tudo isto, desde os primeiros desenhos aos primeiros moradores, aconteceu em apenas sete anos.
Partindo desse exemplo, diria que a participação da comunidade no desenvolvimento de projetos habitacionais é relevante para o sucesso de projetos de habitação?
Tenho tido a experiência da execução de habitação a custos controlados, no âmbito do programa 1.º Direito que vários municípios alocaram às suas Estratégias Locais de Habitação, e devo dizer que o pior erro que se pode cometer é pegar no maior financiamento que Portugal alguma vez teve e fazer habitação que não responde aos contextos em que se inserem, nem aos problemas das pessoas. Felizmente, não faltam programas para promover a participação da população: o programa “Bairros Saudáveis”, que abre a possibili dade à população de apresentar ideias de melhoria do seu bairro; os conselhos locais de habitação, que permitem o planeamento e a gestão mais eficazes e com maior proximidade por parte dos stakeholders do mercado; o programa “Viva o Bairro”, que financia associações de moradores para a execução de projetos de melhoria energética; entre outros exemplos.
Partindo da ideia de que os materiais de construção e a mão de obra escasseiam, refletindo-se no preço final das casas, de que forma a reabilitação urbana pode ajudar
a responder à falta de oferta no mercado habitacional?
Em Portugal existe um contingente de 700 mil fogos devolutos dispersos pelo território. Ora, promovendo mecanismos fiscais que incentivem os privados a alocar no mercado habitacional, sobretudo nos aglomerados urbanos, seria possível robustecer a oferta de habitação. Para isso, é necessário promover e dinamizar as Áreas de Reabilitação Urbana, as respetivas Operações de Reabilitação Urbana e os Programas Estratégicos de Desenvolvimento Urbano. Contudo, para que a reabilitação do edificado surta efeito é preciso avançar noutros setores para
que possamos de falar de uma dimensão mais abrangente: a regeneração urbana. Assim, é importante que se concilie as ambições das Áreas de Reabilitação Urbana com uma política de mobilidade que promova a coesão territorial.
Outra dimensão passa por olhar para as unidades operativas de planeamento e gestão dentro dos aglomerados e avançar na sua programação, dotando-as, por exemplo, de critérios que programem a implantação de edificação que promova a habitação acessível. Por último, a aposta em políticas fiscais, apoiando e dando benefícios fiscais a quem reabilita e agravando progressivamente as taxas e coimas dos prédios devolutos, sobretudo nas zonas de maior pressão urbanística.
Algumas soluções alternativas e disruptivas para responder a esta crise vão surgindo, como o caso de uma empresa que, recorrendo a uma impressora 3D, ‘imprimiu’ uma casa habitável. De que forma é que as ferramentas tecnológicas e a (r)evolução da engenharia civil podem ajudar a equilibrar a ‘lei da oferta e procura’?
A industrialização da construção devia ter sido a área prioritária financiada pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Há muito que se sabe que Portugal não tem mão de obra para o que o setor da construção precisa. Aliás, se não conseguirmos executar, até março de 2026, o que está previsto para a construção de habitação no âmbito do PRR, perdemos esses fundos. Devia-se
ter apostado no uso de novas tecnologias, de técnicas de prefabricação e na construção modular, sob forma de ajudar a colmatar a falta de trabalhadores e acelerar a execução do PRR.
Outra questão indissociável deste tema tem que ver com a qualidade da construção. Portugal tem a quarta maior taxa de população na União Europeia que não consegue aquecer a casa de forma adequada. Que leitura faz sobre esta problemática e que soluções podem ser implementadas para mitigar a pobreza energética?
É por isso mesmo que, quando começamos a organizar espacialmente uma habitação, temos de prestar sempre muita atenção à geometria, à orientação solar, aos ventos predominantes e aos materiais que aplicamos. É possível projetar uma habitação sem recurso a sistemas mecanizados e só com siste mas passivos, por exemplo, procurando orientar os quartos a nascente, a zona comum a poente e a cozinha e instalações sanitárias a norte. Claro que isto nem sempre é possível, mas são princípios que nos permitem ter algum sucesso nessa matéria.
E como se pode resolver isto nos edifícios que já existem?
Pois, vários clientes questionam-me sobre o funcionamento do Fundo Ambiental e do programa “Casa Eficiente 2020”, mas só tem acesso a estes programas quem tem financiamento para avançar, apresentando a fatura para, eventualmente, receber uma parte do valor investido. Ou seja, naturalmente, fica de fora a população com menos recursos financeiros que, por norma, é a que mais preci sa e a que menos informada está sobre estes programas. E esse é outro proble ma: existem programas nacionais e locais sem uma plataforma que os articule e que aguardam a receção de candidaturas. Ainda assim, a resposta não cabe só ao Estado central.
Ainda que seja difícil fazer futurologia, o que prevê sobre o futuro da habitação em Portugal e, em particular, desta região a norte do distrito de Aveiro?
A nível nacional, creio que um dos grandes desafios que temos é ultrapassar a crescente “financeirização” da habitação. Isto é, a ideia que, tacitamente, temos vindo
aceitar: é natural que um jovem se endivide para o resto da sua vida e ter que trabalhar para pagar uma habitação.
Olhando para norte do distrito de Aveiro, apesar de estarmos a falar do mesmo continuum urbano, é um território que atua como charneira entre duas entidades administrativas distintas.
Refere-se à Área Metropolitana do Porto e à Comunidade Intermunicipal da Região de Aveiro…
Exatamente, e isso dificulta a compatibilização de estratégias e de financiamento que possam “coser” este território.
Por exemplo, no caso da mobilidade, o Andante não vem até Ovar, e a expressão do transporte rodoviário de passageiros acaba por ser parco para articular estes aglomerados urbanos. Existe uma triangularização que há muito é desejada: a articulação de Espinho com Santa Maria da Feira e Ovar. No entanto, é uma relação que vai ter dificuldade devido à Linha de Alta Velocidade, que atuará como limite físico e que obstaculizará as relações entre os municípios. Mas é uma análise que deve ser acompanhada – a da duplicação da Linha do Norte, que irá segregar o transporte de passageiros do de mercadorias. Ou seja, haverá mais oferta de transporte de passageiros. Surge uma oportunidade para que estes territórios consigam captar jovens que, não conseguindo encontrar soluções habita cionais no Porto, podem encontrar nestes municípios. Ainda assim, é preciso um conjunto articulado de respostas, para acionar de forma automatizada, quando se começar a sentir essa procura.
Entrevista realizada por Rafael Oliveira, tendo sido publicada no suplemento “Mais Maré”, do jornal “Maré Viva”, a 11 de setembro de 2024.