Entrevista: Eduardo Souto de Moura

Entrevista ao Arquiteto Eduardo Souto de Moura: “Hoje a arquitetura é 99,9% dinheiro”

Eduardo Souto de Moura é um dos mais prestigiados arquitetos portugueses. Como todos já o conhecem bem, não são, por isso, necessárias grandes apresentações. Nasceu no Porto. Passou parte da sua infância na cidade de Braga. Ao longo da sua vasta carreira, conquistou dezenas de prémios, sendo o mais famoso o Pritzker – considerado o nobel da arquitetura –, que venceu em 2011. Na bagagem traz um percurso brilhante. É um homem simples. É autor de várias obras emblemáticas. E foi no seu atelier, na Foz, no Porto, que nos falou abertamente do futuro da arquitetura, da identidade da mesma, do supérfluo e do essencial e da crise que haverá de chegar ao setor.

Como é que vê a arquitetura em Portugal e o futuro da mesma?

Acho que tem de parar. Não digo parar para ficar tudo pasmado, mas, sim, à medida que se vai fazendo, refletir e introduzir os novos dados, porque [eu não estou a fazer um discurso ecológico, até porque não acho muita graça, porque sou arquiteto e gosto de betão e os verdes dizem “betão não, verde sim”]… não é como a Mercedes, a BMW, que têm várias coisas que lhes dão milhões,  nós não temos. Temos de viver da ‘biscatada’.

A acessibilidade das pessoas é igual em Portugal e no estrangeiro? 

Aqui, em Portugal, que é onde eu gosto de trabalhar – não é por ser patriota –, a arquitetura é uma coisa que tem que ver com as pessoas. E a acessibilidade das pessoas, em Portugal, é muito mais fácil. Se tenho um problema de uma viga de que não goste, telefono ao engenheiro… “Estás aí? Amanhã vamos almoçar!”. O dono da obra, se é meu cliente, em princípio, somos amigos. Se não somos, ficamos. Trabalhamos dois, três, cinco, sete anos. Quando digo “isto não está a correr bem, precisamos de alterar isto”… isto lá fora é impossível. Não posso entrar na obra sem autorização. Tenho uma espécie de cartão Visa.

Sente mais prisão, é isso?

Preso e condicionado. Hoje a arquitetura é 99,9% dinheiro. E deixemo-nos de histórias. Em Portugal, ainda existe um certo pudor para se dizer ou fazer isto ou aquilo. “Eu posso, arquiteto, tinha gosto nisso, até vai ficar bem, o senhor tem razão, vamos ver se conseguimos”… Esta conversa existe em Portugal e, consegue-se, muitas vezes. Lá fora, nem pensar. É assim, e o que se definiu é o que fica.

Em arquitetura, quando se idealiza um projeto, como se mantém a identidade de determinado espaço?  

Não é para manter. Acho que é o contrário. A natureza existe para ser alterada. Depois há duas questões: nós temos de introduzir ali uma correção e introduzir formas para servirem as funções que estamos interessados que existam. Há duas maneiras de se fazer isso: violentamente, com o que não concordo, a não ser que seja uma obra-prima; ou adequadamente, que é a capacidade de entender a pré-existência e depois criar-lhe novas funções.

E como é que, num projeto de arquitetura, se elimina o supérfluo e se deixa o essencial?

Talvez seja das coisas que dá mais trabalho num projeto, porque os clientes não resistem a pedir milhões de coisas. Quando era miúdo, os casamentos na aldeia tinham tudo. Tinham bolo, rissóis de camarão, pernas de frango, bolos de coco, arroz de tomate com carapaus… Era uma maravilha tudo, mas não tem de vir tudo junto. 

“O DESENHO, QUER DE INTERIORES QUER DE EXTERIORES, COMEÇA A TER MODOS E VÍCIOS, OU CORRESPONDE A UMA TENDÊNCIA”

Há uns anos a ‘moda’ era criar projetos ‘modernos’, que acabavam por beneficiar do status ‘projeto com design’… Com o tempo passou-se a ver outra realidade. O que é antigo, mas bem construído/restaurado, também é moderno. O que acha que mudou nas mentalidades?

Nunca pensei nisso, mas acho que há regras. O que noto é que, neste momento, o desenho, quer de interiores quer de exteriores, começa a ter modos e vícios, ou corresponde a uma tendência. Por exemplo, quase todos os reclames têm uma parede de tijolo de burro pintada, quer sejam cafés, quer sejam bikinis. As pessoas querem coisas mais amaciadas, mais confortáveis, mais cozy, não estou a dizer se concordo ou não, por acaso não concordo, o mercado é assim, indeciso, e a arquitetura também. Às vezes, nos cafés, folheio as revistas de decoração e há uma tendência quase em usar materiais antigos e os próprios objetos de decoração simulam o antigo. Todos os candeeiros são industriais dos anos 40 e 50. Há uma exceção. Aqui há 10 ou 15 anos havia holofotes, não se via minimalismo, não se viam as luzes, isso desapareceu e toda a gente usa candeeiros de chapa, pintados de preto com fundo branco ou verde-garrafa. É uma recuperação do rústico. Não são só as noivas que querem casar com os agricultores (risos), mas há uma procura do rural. As próprias roupas… aparece tudo vestido de verde tropa com bourdeux, os homens com camisas aos quadradinhos e as senhoras com chapéu de caça. Há esse regresso à natureza, há mais respeito pela natureza, a ecologia é cada vez mais importante. E é esta a adesão. Houve uma certa solidão provocada pelo movimento moderno com o design, o design começou por ser excessivo. Eu próprio também, quando era muito novo, usava muito o design e lembro-me de uma frase que a minha mulher me disse, quando a encontrei na rua, depois de ela ter ido ver uma casa minha. Perguntei-lhe: “Então, está bem?”, e ela disse-me: “Está. Parece uma loja”. Entre uma casa e uma loja há uma certa diferença. Fiquei a pensar muito nisto. Quando tenho de comprar móveis, não vou comprar móveis em segunda mão, a fingir que são antigos. Há móveis e móveis. E há materiais que acho serem adequados para escritório e para outras funções, mas, para casas, acho um pouco excessivos, frios.

Porque é que o fazer novo é mais barato do que o renovar/ restaurar?

O restauro tem mais mão de obra. A arquitetura tem evoluído sobre o ponto de vista construtivo. Não é uma crítica, mas sim uma realidade, para se poupar dinheiro. Aquela operação antiga, de isolar as caixas-de-ar… agora é fazer capoto por fora, betão, que é rápido, depois o capoto por fora demora dois dias, e tem imensas vantagens. A construção é a mão de obra.

Na reconstrução fazem-se muitas barbaridades? Usam-se métodos e materiais menos adequados?

É fácil criticar. Eu também detesto tudo o que se faz. Critico muito. Estou a recuperar um edifício em Lisboa, no Príncipe Real, que acho estar muitíssimo bem feito e o cliente é excecional, deu-me carta aberta. O edifício tinha de ser tratado como uma donzela. A mão de obra é impressionante. Os carpinteiros têm cerca de 60 ou 70 anos e fazem-me escadas em caracol que são autênticas esculturas. Os estuques dos tetos vêm de Viana do Castelo. Isso implica a viagem, têm de ficar num hotel, e o somatório disto é como ir a um cardiologista. Tanto faz chamar um picheleiro como ir a um cardiologista. Portanto, a construção antiga, ou artesanal, é caríssima, porque tem lá mão de obra. 

“HÁ MAIS RESPEITO PELA NATUREZA, A ECOLOGIA É CADA VEZ MAIS IMPORTANTE”

A crise de 2009 teve reflexos na arquitetura. Nestes últimos três anos, vivemos o boom da arquitetura. Constrói-se tudo, em todo o lado. Acha que, nos próximos anos, vai haver uma rotura, uma nova crise no setor? 

Vai haver uma crise, o que é bom. Em chinês crise significa “reavaliar” as situações e propor novas condições. Usei isto porque, quando ganhei o Pritzer, estávamos numa crise, em 2011. Em chinês “crise” tem estes dois significados: de que é um défice, mas, por outro lado, de que é a consciência do défice que obriga a pensar e refletir sobre como temos de fazer daqui para a frente. Acho que vai acontecer isso. Esta situação é um bocado insustentável, estou convencido.

Não dará para todos… 

Acho que temos 18 ou 19 mil arquitetos em Portugal. Há dois anos tínhamos 17 mil. Devem-se formar uns mil por ano. Depois há outra questão que é: o segundo produto que mais se gasta no mundo é a água. E não há água. Sabe qual é o produto que se gasta mais no mundo?! É o betão – isto dito pelos suíços. O betão é feito com pedras e mistura-se cimento. Qualquer dia estamos na Nova Zelândia – isto é uma imagem cínica. Não é possível continuar. Neste momento, na Suíça, quem ganha os concursos são os que constroem em madeira, porque renovam o parque florestal, plantam muitíssimo, cortam muitíssimas árvores, e, portanto, criaram uma indústria florestal sustentável. Estão a evitar o mais possível o betão.

No ano passado recebeu o Leão de Ouro na Bienal de Arquitetura de Veneza. Com esta atribuição do prémio provou que a simplicidade também faz a diferença. 

Posso explicar as circunstâncias, porque já fui acusado de um certo ‘snobismo’, de fazer-me de simples e tal. Vou-lhe ser sincero. Em relação ao Barrocal estava feito. Era fotografar, mandar para lá e estudar a apresentação. Foi muito simples, porque não tinha tempo. Fiz o antes e o depois, fiz duas fotografias aéreas, porque o tema era “Espaço Exterior” e não há nada mais bonito do que o Alentejo. Tinha uma fotografia aérea, que o cliente me deu, telefonei ao piloto e pedi-lhe: “Faz-me outra o mais parecida”. Estava completamente obstinado, para dizer a verdade, com a capela, porque [cá está… há pouco falava de dificuldade] a dificuldade somos nós, e eu tive tudo: era uma pedra lindíssima, cortaram-na, podia ser em betão, deram liberdade e entregaram de bandeja a pedra. Tenho um amigo italiano, o Francesco Dal Co, diretor da Casabella, que me disse: “Não vais fazer em betão, pois isso é uma banalidade. Vou-te arranjar umas pedreiras, duas senhoras espetaculares, em Vicenza, que te vão fazer as pedras”. Fui lá, conversei. Estava aflito porque eu sou católico, sou religioso, no sentido de ser cristão, tive uma educação – portanto acredito em qualquer coisa, mas não acredito na liturgia, nos rituais. Portanto, não percebia nada daquilo. Aquilo tinha de ficar bem. Tinha o mundo inteiro em cima de mim. Só foram escolhidas nove ou dez capelas. O sítio era uma coisa paradisíaca. Ao lado tinha uma igreja e um convento do maior arquiteto de todos os tempos, Palladio, e isto era constrangedor. Se me pedem para desenhar uma cozinha, temos uma noção das coisas. A capela não. Nem eu nem ninguém, penso. Foi essa dificuldade que fez com que resultasse. Toda a gente gostou muito da capela. Eu recebi o prémio pelo Barrocal e não pela capela.

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