
Entre as recentes alterações ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, decorrentes da publicação do Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30 de dezembro, destacam-se a possível reclassificação de solo rústico para solo urbano sem plano e a limitação do valor por m2 da venda das habitações a construir nos terrenos reclassificados a um “valor moderado”.
Segundo o diploma, “considera-se habitação de valor moderado, toda aquela em que o preço por m2 de área bruta privativa não exceda o valor da mediana de preço de venda por m2 de habitação para o território nacional ou, se superior, 125 % do valor da mediana de preço de venda por m2 de habitação para o concelho da localização do imóvel, até ao máximo de 225 % do valor da mediana nacional”.
Para analisar o impacto deste conceito de “valor moderado”, recorremos a dois indicadores disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE):
1. “Valor mediano das vendas por m2 de alojamentos familiares nos últimos 12 meses (€) por Localização geográfica (NUTS – 2024) e Categoria do alojamento familiar”, publicado com caráter semestral. Este indicador regista a mediana à escala municipal, discriminada segundo três categorias: total de alojamentos, alojamentos novos e alojamentos existentes. O último período disponível corresponde ao segundo semestre de 2024;
2. “Vendas por m² de alojamentos familiares (€) por Localização geográfica (NUTS – 2024) e Quartis”. Este indicador, de caráter anual, remete para os dados de 2023, mas apresenta uma vantagem em relação ao anterior: para o total de alojamentos, além de apresentar o valor da mediana, disponibiliza os dados relativos aos 1º e 3º quartis, o que permite medir de forma mais clara o impacto da renda limite proposta.
1. Implicações práticas
A relação entre os valores medianos praticados no mercado livre de habitação, quer a nível nacional, quer a nível municipal, determina o cálculo do “valor moderado” estabelecido pelo diploma. A Figura 1 apresenta a distribuição dos valores em relação à mediana nacional, colocando-se no eixo horizontal o valor mediano em euros (€) por m2 e no eixo vertical o número de municípios onde esse valor é praticado.
Ver Figura 1. Distribuição dos valores medianos de venda em €/m2. © Aitor Varea Oro
Tendo em conta os critérios definidos e os dados disponíveis, consideramos três categorias de municípios:
. CATEGORIA 1. Integrada por municípios onde o valor mediano de venda é inferior ou igual à mediana nacional. O valor limite de venda para os alojamentos a construir neste tipo de solos será o da mediana nacional;
. CATEGORIA 2. Integrada por municípios onde o valor mediano de venda é superior à mediana nacional e que, acrescido de 25%, não ultrapassa 225% da mediana nacional. O valor limite de venda para os alojamentos a construir neste tipo de solos será 125% da mediana municipal;
. CATEGORIA 3. Integrada por municípios onde o valor mediano de venda é superior á médiana nacional e que, acrescido de 25%, ultrapassa 225% da mediana nacional. O valor limite de venda para os alojamentos a construir neste tipo de solos será 225% da mediana nacional
Existe ainda uma quarta categoria, integrada por 8 municípios para os quais o INE não disponibiliza estes valores, não sendo claro qual o valor a ser praticado nem o impacto do “valor moderado” nestes territórios. As quatro categorias e o respetivo peso estão expressos na Figura 2.
Ver Figura 2 – Distribuição dos municípios por categorias, em função do valor da respetiva mediana municipal em relação à definição de “valor moderado” criada pelo Decreto-lei 117/2024, de 30 de dezembro. © Aitor Varea Oro
2. Avaliação do desempenho
Para avaliar o desempenho da aplicação do critério ‘valor moderado’, compara-se o ‘valor moderado’ com o terceiro quartil (3Q). O terceiro quartil, conforme disponibilizado pelo INE, é o valor abaixo do qual estão 75% dos alojamentos mais baratos, com os 25% restantes apresentando preços superiores. Assim, dividimos os 300 municípios para os quais existem dados (ver ponto 1) em dois grupos:
· Valor Moderado abaixo do terceiro quartil;
· Valor Moderado acima do terceiro quartil.
Ver Figura 3. Número de municípios cujo “valor moderado” é inferior ou superior ao terceiro quartil do valor de venda a nível municipal. © Aitor Varea Oro
A segmentação dos municípios pelas categorias estabelecidas, abaixo e acima do 3.º quartil, representada no Quadro 1, mostra que a superação do limite do 3.º quartil diminui à medida que aumenta o valor de venda.
Para perceber se existem municípios onde o “valor moderado” não ultrapassa o terceiro quartil, mas fica a uma distância próxima ao mesmo, procedemos a uma análise mais fina. A figura 4, onde cada ponto corresponde a um município, ilustra:
· Quais são os valores abaixo dos quais fica 25%, 50% e 75% das casas vendidas;
· Qual é a posição relativa do “valor moderado” em relação a estes marcos.
Ver Figura 4. Localização do “valor moderado” em relação aos 1º, 2º e 3º quartis, para cada categoria de município. © Aitor Varea Oro
Verifica-se que:
· Nos territórios incluídos na CATEGORIA 2, o “valor moderado” está muito próximo do terceiro quartil, não se devendo, por isso, desvalorizar a gravidade dos 27 municípios onde o “valor moderado” está abaixo do mesmo;
· Nos 7 territórios incluídos na CATEGORIA 3, o “valor moderado” encontra-se de forma mais clara entre a mediana e o terceiro quartil. Não atingindo o teto do terceiro quartil, a distância com a mediana é, contudo, significativa;
Para avaliar se o “valor moderado” é comparável ao terceiro quartil nos municípios que integram a CATEGORIA 2, foi realizado um teste de Wilcoxon. Com um nível de confiança de 95%, este teste não encontrou evidências suficientes para rejeitar a hipótese de que os dois valores têm uma localização central semelhante. O p-value obtido foi de 0.1237, indicando que, para os municípios em estudo, não há diferenças estatisticamente significativas entre o Valor Moderado e o terceiro quartil.
3. Exemplos da aplicação
Para ilustrar estes dados, representam-se, em baixo, os três quartis e o “valor moderado” de alguns municípios escolhidos de forma aleatória para cada uma das categorias. No quadro 3 incluiu-se o município do Porto, embora o conceito de “valor moderado” do Decreto-lei n.º 117/2024 não se aplique por já não dispor de solos rústicos. Esse quadro ilustra a discrepância mínima de valores referida previamente (exemplo da Póvoa do Varzim, Porto ou Vila Nova de Gaia). No quadro 4 incluiu-se o município de Lisboa, ao qual, tal como e relação ao Porto, o “valor moderado” não se aplica.
4. Conclusões
Da análise realizada, podemos concluir que:
· A aplicação do “valor moderado” coloca as construções pretendidas entre os 25% de habitações mais caras dos municípios;
· Esta situação acontece de forma clara nos 233 concelhos onde o “valor moderado” ultrapassa o terceiro quartil;
· Em 45 dos restantes 67 municípios, o valor “moderado” fica mais próximo do terceiro quartil do que da mediana;
Adicionalmente, devemos considerar que:
· O valor limite é aplicável obrigatoriamente apenas a 70% dos alojamentos construídos;
· Não existem orientações sobre a aplicação de possíveis rendas controladas (acessíveis, condicionadas ou apoiadas);
· Existe, ainda, um conjunto de 8 municípios para os quais não existem dados que permitam aplicar ou avaliar o impacto do “valor moderado”.
Artigo de Aitor Varea Oro . MDT-CEAU-FAUP . 13