O arquitecto que gosta de criar “intriga espacial”

Categorias: Arquitetura

Numa conversa que fluiu, ligeira, sem pressas, João de Sousa Rodolfo, arquitecto fundador da Traçado Regulador fala da sua paixão por construir moradias, que apelidou de “o projecto maldito do arquitecto”. Ficámos a conhecer o seu percurso e as características que tornam as moradias projectadas por este atelier um sucesso nas redes sociais e fora delas.

João de Sousa Rodolfo recebeu-nos no seu novo atelier, em Oeiras, que inaugurou no regresso ao trabalho presencial, pós-pandemia. A mudança do Estoril para Oeiras apanhou de surpresa a equipa mas, numa época dominada pela tecnologia, falar de centralidade é redundante, até porque “hoje fazemos projectos para várias partes do mundo”, afirmou.

Há quanto tempo nasceu a Traçado?
A Traçado Regulador nasceu em 1997. Eu tinha uma empresa na altura que desenvolvia projectos desde 1985 e às tantas fartei-me de estar sozinho. Fui então dar aulas na universidade onde tinha um colega que me propôs uma sociedade. Nasceu assim, em 1997, a Traçado Regulador, mas já depois de um longo período de actividade profissional meu a nível individual.Quis o destino que, anos mais tarde, comprasse a quota do sócio e voltasse a ficar sozinho. A Traçado praticamente nasceu de um desafio académico, de colegas que se conheciam e que se estimavam. Nasce na sequência de uma continuidade do trabalho desenvolvido até aí.

O segmento residencial é aquele onde a Traçado está mais presente? quantos arquitectos trabalham aqui.
Temos uma equipa de 12 pessoas. Neste momento sim, estamos muito voltados para o segmento residencial, embora tenhamos tido um percurso muito variado que passa também pelo segmento turístico, industrial e comercial. A determinada altura especializamo-nos em equipamentos sociais. Creches, lares de idosos, centros de cuidados continuados e algumas incursões pelo hotelaria. Não há um limite relativamente ao que fazemos. Gostamos muito do que fazemos e somos, talvez, perfeccionistas. Uma coisa de que nos orgulhamos é que os erros e omissões nos nossos projectos não ultrapassam 0,1%. Mesmo com os softwares actuais, todos os projectos têm erros e omissões. Basta fazer uma busca pela Internet e vai descobrir que os maiores edifícios mundiais tiveram derrapagens financeiras inacreditáveis.

“TEMOS 96 PROJECTOS ACTIVOS. CONTO-OS TODAS AS SEMANAS. SÃO PROJECTOS EM DIFERENTES FASES PODEM ESTAR EM ESTUDO PRÉVIO, PODEM ESTAR ENTE-PROJECTO, EM ANÁLISE NUMA CÂMARA, EM PROJECTO DE ESPECIALIDADES EM PROJECTO DE EXECUÇÃO, MAS AO TODO TEMOS 96 PROJECTOS”

Esse não é, portanto, um exclusivo português?
O erro é natural nestes processos porque estes implicam equipas pluridisciplinares. O erro é próprio do Homem e quando existe a interacção em 20 ou mais técnicos, imagine a possibilidade de acumulação de erro. E sobretudo quando há projectos que são muito mutáveis ao longo da sua concepção. Nós podemos gabar-nos de ter um erro muito pequeno. Ainda recentemente, numa fábrica que fizémos, registámos, entre o início e o fim do concurso da empreitada, um desvio de 0,1%. E isto retrata o cuidado na coordenação de projecto neste atelier.

Quantos projectos têm neste momento em curso?
Temos 96 projectos activos. Conto-os todas as semanas. São projectos em diferentes fases, que podem estar em estudo prévio, podem estar em anteprojecto, em análise numa Câmara, em projecto de especialidades ou em projecto de execução, mas ao todo temos 96 projectos.

A maioria são projectos residenciais?
Essencialmente, sim. Mas, mesmo dentro do mesmo segmento, temos vários projectos: habitação colectiva, moradias, reabilitações. Bastantes reabilitações. Evidentemente que ficámos muito conhecidos pelas moradias, dado os vários projectos que foram publicados. Eu costumo dizer que as moradias são o “projecto maldito” do arquitecto. E digo isto porque dão muito trabalho e pouco dinheiro. São projectos relativamente pequenos e de uma minúcia muito grande, com um detalhe muito grande. E depois não podemos esquecer que são projectos feitos para as pessoas, e cada pessoa é diferente, tem uma vivência e gostos diferentes. Todavia, não vemos isso como um obstáculo. Costumo dizer que o pior inimigo do arquitecto é a mulher do cliente.

 

A que se deve isso?
Porque a mulher do cliente é a quem, normalmente, cabe mais a gestão da casa e tem uma opinião e uma visão sobre o modo de utilizar do espaço doméstico enquanto o cliente quer fazer a sua obra de arte. Mas quer uma visão quer outra não têm que ser um obstáculo, vemos aqui uma oportunidade de fazer diferente. Estas variáveis são essenciais para nós. Depois, não ganhamos muito dinheiro a fazer moradias, às vezes nem ganhamos dinheiro. É verdade isto. Somos tão perfeccionistas num pequeno projecto como num grande projecto e ser perfeccionistas nestes projectos significa muito tempo investido e muitos recursos humanos investidos. Mas dá-nos muito gozo fazer estes projectos e fazer projectos diferentes, porque as variáveis mudam de cliente para cliente. Estes projectos são sempre muito bem-vindos e cada nova moradia que fazemos é encarada como algo novo e que nos realiza.

“EU COSTUMO DIZER QUE AS MORADIAS SÃO O “PROJECTO MALDITO” DO ARQUITECTO. E DIGO ISTO PORQUE DÃO MUITO TRABALHO E POUCO DINHEIRO. SÃO PROJECTOS RELATIVAMENTE PEQUENOS E DE UMA MINÚCIA MUITO GRANDE, COM UM DETALHE MUITO GRANDE. E DEPOIS NÃO PODEMOS ESQUECER QUE SÃO PROJECTOS FEITOS PARA AS PESSOAS E CADA PESSOA É DIFERENTE, TEM UMA VIVÊNCIA E GOSTOS DIFERENTES”

Foram também as moradias que vos deram visibilidade.
De facto, estamos muito gratos às moradias. Eramos um atelier, diria, pouco conhecido. Tínhamos que fazer, como tantos outros, e procurar trabalho pelos canais habituais. Não tínhamos uma carteira muito diversificada de clientes e depois o acaso prega-nos partidas. Tivémos uma crise financeira no País, que gera, sem o sabermos, uma nova oportunidade para entrarmos num novo segmento. Em 2011, ficámos sem trabalho, tínhamos variadíssimos projectos de equipamentos sociais que ficaram pelo caminho e sofremos, aliás como quase todo o sector da construção civil sofreu na altura. No meio desta crise aparece um cliente que me pergunta se eu quero fazer o projecto da sua moradia. Eu disse-lhe “nem que fosse o projecto para a casota do cão”. Estávamos sem trabalho e, portanto, faria qualquer coisa. E fizemos esse projecto e publicámo-lo no Facebook e começámos a ter retorno imediato.

 

E nunca mais pararam…
A nossa notoriedade começou a partir daí até ao ponto de, neste momento, estarmos entre as cinco páginas de Facebook mais seguidas no Mundo na área de arquitectura. Costumo dizer que se fizesse escolas ou hospitais ninguém punha “gosto”, mas como projecto casas e as pessoas sonham em ter uma casa, mesmo que não tenham capacidade financeira para concretizar esse sonho, partilham com os seus amigos e familiares e, portanto, acaba ter uma divulgação natural que outro tipo de projectos não teria. Esta notoriedade trouxe-nos mais projectos de moradias e daí sermos conhecidos pelas moradias, embora façamos muito mais.

 

DA “INTRIGA ESPACIAL”
À FUGA PERMANENTE PARA O EXTERIOR
Há mudanças na forma como hoje habitamos uma casa do que há dois ou três anos? Isto depois de uma pandemia…
A mudança faz parte da vivência do Homem, ao longo do tempo vemos diferenças na forma como habitamos as nossas casas. A mudança faz parte e acompanha a vivência e as relações das pessoas. Hoje em dia há uma tendência para uma fluidez espacial total, o que nos traz duas vantagens. A primeira é a própria utilização do espaço ser muito mais agradável e mais adequado aos tempos que vivemos. A segunda é a leitura psicológica e muitas vezes subliminar que fazemos do espaço. Uma casa tem que ser entendida daí, por exemplo, o pé-direito duplo na entrada. Porquê? Porque ninguém gosta do que não entende. Se eu lhe recitar um poema em chinês provavelmente não gosta nem desgosta é lhe indiferente porque não conhece. As pessoas gostam daquilo que entendem, esse entendimento não tem que ser consciente pode existir um entendimento no plano do subconsciente, mas esse entendimento existe. Então é algo que tem que ser proporcionado.
Se fizer uma casa de espaços estanques, o meu entendimento do espaço é confuso. Depois há outra coisa: o gerar o interesse pelo espaço, a chamada “intriga espacial”, que cultivamos aqui. Os espaços que se interpenetram, uma espécie de labirinto a desvendar e que é muito interessante. Vou lhe dar um exemplo: as pessoas dizem que gostam de jardins interiores. Não é disso que gostam, sabemos do que gostam e não é de jardins interiores.

 

Então do que é que as pessoas gostam?
As pessoas gostam desta intriga espacial, o espaço exterior que entra no espaço interior. Esta relação e exploração das várias relações que se conseguem entre o interior e o exterior, o baixo e o cima, tudo isto gera uma complexidade entendível pelo nosso cérebro mas também explorada pelo nosso cérebro. Outra coisa importantíssima que cultivamos é a permanente fuga perceptiva para o exterior, É uma característica dos nossos pro- jectos. E as pessoas descobriram esta necessidade durante o confinamento. Antes do confinamento eu falava desta relação perceptiva com o exterior e parecia que era apenas filosofia, era uma coisa que “ahh, ok… estas conversas de arquitecto e tal”. Mas quando as pessoas estiveram fechadas 24/24 horas dentro de uma casa, sem ter uma relação com o mundo natural e indo à janela e vendo uma selva de betão deserta que era a cidade, aí as pessoas começaram a perceber que esta relação com o exterior era essencial nas suas vidas.

 

Há uma maior valorização do espaço exterior?
Sim, muitas vezes as pessoas valorizam o seu jardim ou a sua piscina enquanto espaço de lazer. Embora em 99,9% do tempo da sua utilização seja uma utilização passiva, onde a água é um elemento que o tranquiliza, que lhe dá bem-estar adicional à sua vivência espacial e o jardim tem a mesma função. Isto é o que torna os espaços exteriores tão interessantes.

 

Nos seus projectos começa por imaginar primeiro este espaço exterior e depois a sua comunhão com o interior? Ou como é que começa?
É muito difícil dizer-lhe como é que começo. Diria que é os projectos começam sempre da mesma maneira: olhando o local, o sítio que tem características próprias. A envolvente natural, a morfologia do terreno, a forma do lote, as limitações de área etc. Depois temos o programa do nosso cliente e a adaptação desse programa à realidade. Há pessoas que sonham com casas enormes em terrenos que não permitem ou com formas de casas com maior variação volumétrica em terrenos com polígonos de implantação muito pequenos onde tal não é possível, e, portanto, há aqui sempre um trabalho preparatório entre local e programa, de forma a configurar qualquer coisa que seja exequível. Depois, é preciso entender muito bem o que vai na cabeça do cliente. Diria que o projecto não começa pelo exterior nem começa pelo interior, começa por um conjunto de variáveis interminável incluindo variáveis legislativas, construtivas, técnicas e espaciais do lugar, económicas… depois o trabalho do arquitecto não é como uma equação com uma solução final, tem muitas soluções. Cada arquitecto produz uma solução diferente para o mesmo espaço com o mesmo programa. Portanto, no fundo é um processo interactivo, um processo por tentativa e erro que busca soluções que servem aquele propósito. Esta é uma busca continua. E nessa nessas soluções há que conjugar variáveis intermináveis. É um exercício difícil a arquitectura. Muitas vezes para um leigo resume-se a fazer desenhos, mas os desenhos concretizam ideias e as ideias no fundo são a resposta a esse conjunto infindável de variáveis.

 

A ênfase na sustentabilidade está a mudar de alguma forma a arquitectura?
Enquanto espaço vivencial, não. Eu diria que tem alterado a componente técnica, isso sim. Eu não vou aumentar as minhas áreas de cobertura para ter mais painéis solares, mas eventualmente aumento a espessura das paredes para ter mais isolamento térmico.

“HOJE EM DIA HÁ UMA TENDêNCIA PARA UMA FLUIDEZ ESPACIAL TOTAL, O QUENOSTRAZDUASVANTAGENS. A PRIMEIRA É A PRÓPRIA UTILIZAÇÃO DO ESPAÇO SER MUITO MAIS AGRADÁVEL E MAIS ADEQUADO AOS TEMPOS QUE VIVEMOS. A SEGUNDA É A PRÓPRIA LEITURA SE QUISER UMA LEITURA PSICOLÓGICA E MUITAS VEZES SUBLIMINAR QUE FAZEMOS DO ESPAÇO”

Que projectos mais o marcaram?
Vou-lhe dizer uma coisa que é sentida: fazer um projecto é como fazer um filho. É uma continuidade nossa no mundo. Os edifícios têm uma longevidade muito superior à nossa e esperamos que assim seja, significa que a obra de arquitectura foi boa. E com esta analogia, é algo que fica e tal como com um filho não podemos dizer que gostamos mais de um ou de outro, porque cada um tem as suas características especiais próprias e têm o seu enquadramento. Eu não consigo gostar muito mais de um projecto do que de outro. Mas posso dizer que há projectos que me marcaram, como essa primeira moradia que lhe disse que fiz no tempo da crise e que me fez passar de ter zero trabalho, para ter um pipeline em continuo. Foi uma construção com 1350 m2, inserida num lote com cerca de 10 mil m2 e que me marca pela circunstância. É um filho primogénito. Até há projectos não concretizados que me marcam, pela peculiaridade de projecto. Em tempos fiz um projecto para a baixa, em Lisboa. Ainda no tempo em que não se podia tocar na baixa, só deveríamos devolver as características primitivas do edifício. Se este não tivesse WC não o podíamos construir. Mas este era um edifício pré-pombalino que foi acrescentado à malha pombalina e que envolveu da nossa parte muita investigação, muito trabalho e que acabou por não ser concretizado. Era um hotel, no antigo Convento do Corpus Christi. O nosso projecto tinha pegado na igreja e nos espaços anexos, todos amputados para suportar a malha pombalina, e fizémos um projecto de hotel de charme em torno do que restava da igreja. Não sendo um edifício “meu”, deu-me muito gosto. É um projecto que vai ficar na memoria. De resto, eu gosto muito de muitos projectos meus, mas de nenhum em particular.

 

Artigo de Manuela Sousa Guerreiro
Fotos: Frame It

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