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O edifício modernista na zona da Almirante Reis vai ser transformado em supermercado. Há quem questione o impacto da mudança na vida do bairro. Como podiam ser melhor utilizados estes espaços emblemáticos da cidade?
Do que era já só resta a Cervejaria Barca Bela, que se mantém em funcionamento, servindo marisco e grelhados no carvão há mais de 50 anos. Todas as outras pequenas lojas do rés-do-chão já fecharam: a pastelaria, a tabacaria, a loja de conveniência, o snack-bar eclético que vendia kebabs, pizzas e woks. As portas de vidro estão tapadas por cartões e espreitando lá para dentro só se vê o pó.
Quanto à garagem, que ocupava a maioria dos 2546 metros quadrados do prédio (distribuídos por dois pisos), é agora um estaleiro de obras.
A mudança não foi pacífica. Antes de mais, porque a Garagem Liz é um edifício construído em 1933 e classificado como Imóvel de Interesse Público. O projeto precisou, portanto, não só do aval da Câmara Municipal de Lisboa (CML) como da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), que exigiram garantias de que o projeto original, de autoria do arquiteto Hermínio Barros, não seria desvirtuado.
Depois, porque um supermercado de grandes dimensões naquele local tem impacto, quer no trânsito quer no tecido comercial do bairro. E em última análise, na própria dinâmica da vizinhança, como bem lembraram os representantes do Partido Comunista Português e do Bloco de Esquerda na reunião da Câmara onde o tema foi discutido,
O urbanista João Seixas é um dos que lamenta que, mais uma vez, não se aproveitem estes espaços emblemáticos da cidade para criar “centros cívicos” que pudessem tornar-se verdadeiros pólos dinamizadores dos bairros de Lisboa. Em vez de mais do mesmo.
Antes de ser garagem, o Liz foi teatro
Naquele local da rua da Palma, antes de haver uma garagem, houve um teatro: o Real Colyseu de Lisboa, construído em 1887 em terrenos que pertenciam à condessa de Geraz de Lima e depois ao seu viúvo, o conde da Folgosa. O Real Colyseu funcionou como teatro-circo, apresentando ópera cómica, circo e espetáculos equestres, e foi, a partir de 1896, transformado em animatógrafo – foi ali que se realizaram as primeiras sessões de cinema em Portugal.
Mesmo ao lado, foi inaugurado em 1907 o Paraíso Lisboa, um parque de diversões que incluía teatro, ringue de patinagem, carrossel, barracas de tiros e de comes e bebes e outros divertimentos.
Em 1917, o espaço do Real Colyseu foi alugado à Administração dos Correios e Telégrafos para serviços de encomendas. O edifício acabaria por ser demolido em 1926.
Uma garagem “Arte-Déco”
Em 1933, a firma J. Caldas Lda. entregou à Câmara de Lisboa o pedido para a construção da Garagem Lyz (esta era a grafia original, depois o y passou a i e, finalmente, em alguma da sinalética mais recente o z passou a s). O projeto era de Hermínio Barros e a garagem tornou-se um dos exemplos da arquitetura modernista e geometrizada dos anos 1930 na cidade.
“Este imóvel é um bom exemplo da renovada arquitectura que a utilização do betão armado possibilitou”, escreveu Jorge Mongorrinha no artigo “Arquiteturas de Esquina”, publicado em 2000 no Caderno 4 do Arquivo Municipal de Lisboa.
A Garagem Liz “possui um desenho marcadamente ‘Art-Déco’, caracterizado por um jogo muito rico de linhas rectas, verticais e horizontais, de onde se destaca a modelação de fachadas, com grandes envidraçados e pilastras que percorrem os dois pisos, conferindo-lhes uma leitura global plana, em contraponto porém com alguns apontamentos curvos nas consolas que encimam os vãos do piso térreo”.
Degradação e classificação
Funcionando principalmente como garagem e com outros pequenos espaços comerciais no rés-do-chão, o edifício acabou por sofrer inúmeras alterações, aleatórias e nem sempre respeitando o espírito do projeto original.
Em 1981, foi classificado como imóvel de interesse público por despacho do então Instituto Português do Património Cultural (IPPC) e da CML. De então para cá, foram recusadas algumas intervenções.
Em 1992, a propósito de um pedido de legalização de alterações, o parecer do IPPAR considerou “altamente danosas quaisquer obras efetuadas ilegalmente no edifício em questão, sobretudo quando estas implicam a perda de uma montra em ferro forjado pintado, que contribuía para a manutenção do ambiente “Art-Déco” no piso térreo”. Refere ainda o mesmo parecer que “a montra proposta, pelo ato de ser uma intervenção pontual, nada tem a ver com o espírito do edifício, contribuindo para a continuação da sua descaracterização.”
De novo em 1996, um pedido para a substituição integral das instalações de uma cafetaria não foi aprovado pelo IPPAR, considerando este organismo que pelo valor do imóvel não se deveriam permitir intervenções pontuais.
Mas a classificação não impediu a degradação, fruto da falta de manutenção, do vandalismo e das intempéries. Em 2013, o Fórum Cidadania Lx pedia a intervenção da DGPC para que se tomassem as “medidas de proteção e salvaguarda necessárias” perante o edifício que estava já “em estado de pré-decrepitude”.
Este grupo de cidadãos sublinhava a necessidade de realizar as “obras de conservação e recuperação que um imóvel desta importância exige, compreendendo a reposição dos elementos feitos desaparecer durante os últimos 20 anos, como sejam o relógio da fachada, muitos dos vidros das estruturas geométricas decorativas, etc.”.
De garagem a supermercado
O projeto do supermercado, apresentado pela primeira vez à CML em meados de 2019, compromete-se a manter “a matriz estrutural pré-existente, sem qualquer tipo de alteração relevante”, a não ser a instalação de um elevador, fazendo ainda “reabilitação e reposição integral das fachadas” e realizando “obras de conservação e restauro geral”.
A renovação exterior privilegiará a “limpeza e reposição da imagem, no sentido de retirar todos os elementos descaracterizadores da linguagem original do edifício”, “numa relação de respeito para com os elementos e bens arquitetónicos classificados desde 1983 pela DGPC”.
Assim, o projeto prevê a recuperação dos coruchéus, a manutenção das pedras de soleira e parapeitos sempre que possível e a recolocação das caixilharias originais.
“O objetivo é garantir a continuidade da utilização do edifício” – como espaço de “comércio e serviço” – com “uma clara atitude de renovação e conservação numa perspetiva contemporânea”.
O rés-do-chão será ocupado pelo supermercado e outras lojas, o primeiro piso terá um estacionamento público para os clientes e haverá ainda uma zona de escritórios, de armazém e de cargas e descargas.
Foram colocadas algumas reservas e as autoridades fizeram algumas exigências – no que toca ao estacionamento, controlo do tráfego e segurança – mas a DGPC acabou por dar o seu aval à obra, admitindo um “reconhecido esforço de compatibilização dos valores patrimoniais presentes no imóvel com o programa funcional proposto” e sublinhando que “estamos perante um imóvel praticamente devoluto que já sofreu um conjunto de generalizado de intervenções desqualificadoras e que apresenta um débil estado de conservação”.
Na reunião de Câmara realizada a 15 de abril, o projeto acabou por ser aprovado com 13 votos a favor (PS, CDS-PP, PSD e independentes) e 3 votos contra (PCP e Bloco de Esquerda).
No entanto, o Fórum Cidadania Lx voltou a manifestar o seu desagrado e enviou uma carta ao presidente da Câmara, Fernando Medina, lamentando que a CML não tenha exercido o direito de preferência para adquirir a garagem e reabilitá-la para “oferecê-la à população como estacionamento para residentes e comerciantes”.
O movimento cívico diz-se preocupado com a intervenção: “É preciso que todos tenhamos a consciência que não é apenas a fachada que está classificada mas sim o edifício como um todo, por ser um testemunho notável de um momento histórico particular, com a sua cuidada proposta estética e técnica plasmada num novo sistema construtivo que se celebrava com orgulho.”
E se em vez de supermercado fosse um centro cívico?
“É uma pena que não se tenha aproveitado esta oportunidade para pensar como se poderia melhorar a vida das pessoas que moram naquela zona”, lamenta o urbanista João Seixas, considerando que aquele edifício – pelo sua localização, pelo seu tamanho e pelo seu simbolismo – seria perfeito para criar um centro cívico, à semelhança dos que existem em cidades como Barcelona ou São Paulo.
“A ideia seria, para cada bairro ou freguesia da cidade, haver um centro social, cultural e económico, compondo uma rede estrategicamente pensada para dinamizar a vida do bairro”, explica. “Hoje em dia, nesta era digital e ainda por cima com a pandemia, estamos muito fechados, individualizados, com dificuldade no relacionamento. Um dos aspetos fundamentais de uma boa política de cidade deve ser a promoção dos laços de comunidade e os centros cívicos poderiam ser um dos eixos dessa estratégia.”
Tal como os imagina João Seixas, os centros cívicos podem ser “locais demonstrativos de novas formas de vivermos em comunidade, o que envolve projetos sociais, culturais e económicos. Não é apenas uma biblioteca nem é apenas um co-working ou um centro de inovação social, é tudo isso”, diz.
Esses centros “nunca devem substituir as dinâmicas públicas e privadas que a cidade tem, devem antes potenciar essas dinâmicas”, avança. Não têm de ser exclusivamente públicos, podem ser geridos em parceria com coletividades ou privados, mas “devem ser locais simbolicamente relevantes e que sejam demonstrativos, quase como laboratórios do futuro da vida em comunidade. São locais de criação, para criar porosidade entre os diferentes agentes da cidade, diferenciando-se consoante as realidades de cada bairro e criando uma centralidade de bairro.”
Por isso, o urbanista defende que “há determinados edifícios – simbólicos, relevantes – que poderiam ser usados com este fim. E aqui nesta zona da Almirante Reis, a Garagem Lis seria o local perfeito para esse tipo de equipamento”, conclui. “Com a Garagem Lis já não vamos a tempo, mas devíamos pensar nisto para as várias ‘garagens lis’ que ainda há por Lisboa.”
© Artigo de Maria João Caetano ( jornalista), publicado no site amensagem
Fotos: Rita Ansone
Foto Arquivo Municipal – No local onde, nos anos 1930 foi erguida a Garagem Liz, existiu antes um teatro: o Real Colyseu de Lisboa.
Foto do arquivo do Jornal O Século – Edifício da Garagem Lyz, como nos anos 1930, quando foi construído, era denominado.