
Volto ao tema das cidades inteligentes e criativas (Covas, 2020) e deixo para o leitor uma grelha de leitura para o futuro próximo, desta vez sob a forma de um decálogo de reflexão estratégica sobre a cidade inteligente, justa e criativa.
1. Não há nenhum determinismo tecnológico, a cidade inteligente não se confunde com a cidade digital, ou seja, não existe autorrealização por via tecnológica e digital.
Na sociedade do conhecimento, por todas as razões, as interações entre tecnologia e território são um tópico de prioridade elevada. O meu pressuposto é simples, todos os territórios, e as cidades por maioria de razão, têm uma inteligência coletiva tácita ou implícita que os seus principais atores e representantes podem explicitar e desenvolver se forem capazes de resolver os seus principais défices de conhecimento. Não há, portanto, nenhum fatalismo ou determinismo especial com um território, que nunca será uma espécie de máquina inteligente, simplesmente, na sociedade do conhecimento a origem dos problemas reside num défice de conhecimento que é necessário colmatar.
2. Vamos assistir a uma hibridação das inteligências, humana e artificial, e à formação de novas inteligências coletivas territoriais.
É a emergência da realidade aumentada e virtual (RAV) que, a breve trecho, terá continuação nas tecnologias imersivas do metaverso; este universo virtual, em conjunto com a gestão de metadados e os sistemas de georreferenciação, alimentará uma analítica urbana cada vez mais sofisticada de que a smart city sairá beneficiada em primeira instância, ou seja, vamos assistir à formação de comunidades inteligentes territorialmente muito inovadoras.
3. Os impactos tecnológicos sobre a cidade e a sua pegada ecológica irão condicionar a engenharia das infraestruturas, a arquitetura urbana e o metabolismo da cidade.
Começamos, agora, a perceber melhor o impacto e a pegada energética e ecológica de determinadas tecnologias digitais, ou seja, estamos obrigados a rever toda a cadeia de valor da cidade inteligente e criativa, desde a engenharia dos principais equipamentos e infraestruturas, à arquitetura urbana, seus materiais e desenho urbano, isto é, tudo o que interfere com o metabolismo urbano e as características próprias de uma cidade orgânica.
4. A cultura digital criará uma outra estética urbana, isto é, uma cidade inteligente e criativa com uma cenografia e coreografia muito próprias.
O modo como as artes digitais interagem com as artes do ambiente e as artes do espaço público é, indiscutivelmente, uma outra linha estética urbana que mudará a cenografia e a coreografia próprias da cidade inteligente e criativa, se esse for, obviamente, o novo espírito do lugar; por outro lado, o uso cada vez mais frequente das tecnologias digitais será acelerado pela turistificação das nossas cidades que se transformarão, cada vez mais, em cidades-espetáculo.
5. As plataformas made in, os aplicativos e os smartphones estarão na base de uma cocriação da cidade e de um novo contrato social com os cidadãos.
À medida que a literacia digital faz o seu caminho, os nativos digitais encarregar- se-ão de sugerir e propor à comunidade onde residem novas formas de comunicação e participação, ou seja, doravante, irão suceder-se as plataformas made in e as aplicações dedicadas aos assuntos locais mais críticos e criativos e teremos uma verdadeira cocriação da cidade inteligente, justa e criativa, uma espécie de experimentação social em múltiplos domínios da vida comunitária.
6: Uma nova relação cidade-campo em direção à 2ª ruralidade
Perante o impacto devastador das alterações climáticas teremos de criar novos formatos socioinstitucionais e organizacionais que irão informar e promover a reconfiguração do sistema operativo dos mosaicos agropaisagísticos e territórios-rede e suas plataformas colaborativas através de uma geoeconomia ajustada a cada mosaico paisagístico, ao plano de infraestruturas e corredores ecológicos, aos sistemas produtivos locais, às amenidades paisagísticas e recreativas, ao dispositivo de gestão de riscos e à provisão dos serviços de ecossistema. Refiro-me a atores-rede como os condomínios de aldeia e os clubes de produtores, as zonas de intervenção florestal e as áreas integradas de gestão paisagística, as áreas de paisagem protegida como os parques naturais, os geoparques e as zonas termais, os centros operativos tecnológicos e os laboratórios colaborativos, as comunidades intermunicipais, entre outros formatos.
7. Uma pequena revolução na governação política da cidade inteligente, justa e criativa, face a face duas cidades, a cidade centralizada e a cidade coproduzida.
A democracia participativa e coproduzida ganhará um novo folego com as tecnologias digitais de última geração, lado a lado com a democracia representativa mais convencional das comunidades locais; estes progressos nas comunidades online inteligentes irão desencadear não apenas uma nova divisão do trabalho municipal e intermunicipal, em especial na organização e arquitetura dos serviços municipais, mas, também, profundas alterações em muitas outras áreas de governo e administração local que poderão ser, doravante, coproduzidas.
8. A importância das redes de cooperação entre cidades, o novo URBACT IV
O Urbact é um programa europeu de cooperação que, desde 2003, tem vindo a promover a cooperação entre cidades em estreita ligação com a política de coesão da União Europeia. O Urbact IV que estará em vigor até 2027 reforça o mecanismo de transferência de inovação entre cidades que desenvolvem planos de investimento para iniciativas denominadas ações inovadoras urbanas. As redes deverão ser compostas por 8 a 10 parceiros de sete países diferentes, podendo participar cidades de todas as dimensões e também dois parceiros não-cidades, como universidades, centros de investigação ou autoridades públicas. A rede europeia de cidades criativas é um bom exemplo deste tipo de cooperação.
9. A cidade limpa, justa e solidária, a formação do 4º setor
A cidade inteligente e criativa do futuro não pode ser digitalizada apenas para ser esperta ou divertida, tem de ser, sobretudo, uma cidade limpa e circular, justa com os mais vulneráveis e solidária com os mais desfavorecidos, ou seja, a smart city do próximo futuro terá de promover a inclusão social e a inovação ambiental como os vetores estruturantes principais da sua ação executiva, de modo a abrir uma janela de oportunidade para a organização do 4º setor, o setor mais inovador de todos, que consagrará o respeito integral pelo nossos concidadãos, seja qual for a sua origem.
10. As comunidades virtuais e a força dos laços fracos
A nova morfologia da sociedade contemporânea e as inúmeras interconexões da sociedade em rede recolocam em termos inovadores o tema do capital social das comunidades humanas, mais próximas, umas, e mais longínquas, outras. A internet, através das suas plataformas dedicadas, está na origem de uma socialização muito mais extensiva e diversificada, o que significa que a internet fornece informação e novas oportunidades a baixo custo, expandindo, assim, a sociabilidade para lá dos limites socialmente definidos de auto-reconhecimento. Aos vizinhos das comunidades físicas de proximidade, as plataformas digitais colaborativas juntam agora o universo dos internautas das comunidades virtuais. A cidade inteligente, justa e criativa deve dedicar uma especial atenção aos laços fracos das comunidades virtuais e aos efeitos difusos e dispersivos destas comunidades.
Nota Final
Em cada um destes eixos do decálogo acrescentamos conetividade e metabolismo urbano à cidade inteligente, justa e criativa que, assim, se torna mais compreensiva e complexa e, portanto, mais humana. Em síntese, tecnologia e transformação digital, ecologia e paisagem global, criatividade e cultura, estas são as várias facetas da cidade inteligente, justa e criativa do século XXI. Voltaremos mais vezes ao assunto.
Artigo de António Covas, Professor Catedrático na Universidade do Algarve
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