
“Vejo a Arquitetura como um ato de defesa da paisagem” – Brunch com o arquiteto Luís Rebelo de Andrade, vencedor do Prémio Internacional Rafael Manzano.
A surpresa começa logo no convite para o almoço, marcado, não para uma instituição oficial nem sequer para um restaurante da moda, mas para o atelier Rebelo de Andrade, no lisboeta bairro de Carnide, onde em tempos funcionou um moinho, dos muitos que aqui havia quando a cidade terminava lá para a Rotunda do Marquês. Na sala de refeições, improvisada entre os postos de trabalho de trinta arquitetos, é posta uma mesa comprida que, durante perto de duas horas, funcionará como a jangada de pedra de Saramago, já que a ela se sentam portugueses e espanhóis para celebrar a atribuição do Prémio Internacional Rafael Manzano, o maior de Arquitetura da Península Ibérica, ao “dono da casa”, Luís Rebelo de Andrade. E porque a arquitetura, acredita o premiado, se alimenta de muitos saberes (incluindo a gastronomia), também a essa mesa se há-de falar da História comum aos dois países e da eterna perplexidade sobre o que ainda desconhecemos uns dos outros, apesar do muito (geografia, política, mas também emoções estéticas e sensoriais) que nos une.
Comecemos pelos factos da notícia, que levaram uma jornalista a imiscuir-se entre comensais mais dados ao traço do que à palavra escrita: o Prémio Rafael Manzano, no valor de 50 mil euros é atribuído pela Fundação Culturas Construtivas Tradicionais, a International Network for Traditional Building Architecture and Urbanism (INTBAU) e a portuguesa Fundação Serra Henriques, e tem como principal objetivo “difundir o valor da arquitetura tradicional em Portugal e Espanha, quer no restauro de monumentos e conjuntos urbanos de valor histórico e artístico como na construção nova, através de intervenções capazes de se integrar de forma harmoniosa nos referidos conjuntos”.
O distinguido deste ano, Luís Rebelo de Andrade, formou-se em Arquitetura pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, em 1986, depois de ali ter estudado Escultura, para algum susto dos pais, admite, “receosos da insegurança da vida artística”. Transformado, pois, em arquiteto, fundou o seu atelier em 1989, destacando-se desde logo por projetos como a Embaixada Britânica (1990) e a Casa do Artista (1991), ambos em Lisboa. Entre os projetos mais recentes, também na capital, destacam-se o restauro da Igreja de São José dos Carpinteiros, na rua de S. José e a reabilitação do Palacete da Falcarreira, na rua do Salitre. Fora de Lisboa, o júri do prémio, na sua apreciação da carreira distinguida, destaca o Hotel Six Senses, em Samodães, Lamego, onde se transformou uma antiga quinta no norte de Portugal num complexo hoteleiro, assim com o Hotel Rural Casa dos Viscondes da Várzea, na mesma região, cuja recuperação permitiu a utilização hoteleira de um antigo solar com tradição vinícola. Enfim, um percurso que, de acordo com a declaração de voto do júri do Prémio Rafael Manzano se distingue “pelas tradições construtivas, pela história e pela paisagem portuguesa”.
Ainda antes de passar à mesa de almoço, Luís Rebelo de Andrade conta-me como esta distinção, que reconhece o intrínseco, mas nem sempre atendido, valor cultural da sua profissão vem ao encontro das suas convicções obre o assunto: “Este reconhecimento significa para mim a confirmação dos valores e ideias com que faço Arquitetura há mais de trinta anos. Não me alimenta a vaidade, porque acho que essa é destrutiva, mas incentiva a que continuemos na mesma senda.” Por valores e ideias, o premiado entende a defesa da identidade cultural e a garantia de que a diversidade de cada região não é posta em causa pela globalização, que tudo uniformiza à sua passagem: “Vejo o exercício da minha profissão como um ato de defesa da paisagem, que não é propriedade de quem quer que seja, mas sim da humanidade.” Uma visão que nem sempre é popular entre quem paga, como, aliás, reconhece: “Muitas vezes pensa-se que o arquiteto aluga a mão para outro desenhar. No nosso caso, despedimos os clientes que têm essa pretensão.”
Com este respeito pela paisagem e pela identidade cultural nasceram, pois, alguns dos seus trabalhos mais emblemáticos como o projeto Pedras Salgadas Eco Resort, assinado em parceria com Diogo Aguiar, no município de Vila Pouca de Aguiar, que, em 2012, foi eleito Edifício do Ano na área de hotelaria, pela plataforma internacional de arquitetura ArchDaily. Cinco anos mais tarde, em 2017, recebeu o Prémio do Júri e o Prémio do Público, na área de renovação da plataforma Architizer A+, pela residência de estudantes construída no edifício da antiga Fábrica de Vidros das Gaivotas, em Lisboa.
Mas a Luís Rebelo de Andrade, o reconhecimento não tolda a lucidez: “A ironia é que se fala cada vez mais de sustentabilidade, mas, em regra, os nossos edifícios são cada vez menos sustentáveis. Vou a Aveiro e a cidade está cheia de edifícios pretos. Em Viseu, a mesma coisa. Volto para Lisboa e só vejo torres de vidro. São arquiteturas feitas por catálogo, sem a consciência da importância da intervenção do arquiteto no território.” E alerta para os perigos e tentações que rondam os profissionais da área: “Antes, o recurso aos materiais autóctones eram uma limitação bem-vinda ao nosso trabalho porque permitia preservar a identidade do lugar. Hoje vem pedra da China, mais barata do que se compra aqui. Tudo está demasiado acessível. No nosso caso, procuramos obter as respostas nos locais onde intervimos e não partir para o terreno com o modeloready made, escolhido numa revista da especialidade”.
Enquanto fala comigo, Luís Rebelo de Andrade tem atrás de si a expressão visual da sua filosofia de trabalho, através de fotografias em formato XL de um dos seus projetos mais reconhecidos: A Casa Vermelha, construída na Herdade da Considerada, extensão de terreno com 500 hectares, a cerca de sete quilómetros de Alcácer do Sal, onde imperam sobreiros e pinheiros mansos. Com duas águas, portas e janelas, o desenho exterior da casa, tão simples “que parece ter sido desenhado pela minha neta”, brinca, privilegia a sustentabilidade energética, ao mesmo tempo que os materiais empregues proporcionam um isolamento térmico e garante uma alta resistência ao fogo e um bom isolamento acústico. Devido à localização do projeto, criaram-se infraestruturas de águas e esgotos independentes à rede de saneamento pública, sendo o abastecimento feito a partir de um furo: “Concebemo-la como uma casa auto-suficiente, que é quase um statement de sustentabilidade. Não está ligada à energia elétrica externa (só recorre a painéis fotovoltaicos) e também não depende da rede pública de abastecimento de água”.
O arquiteto está consciente de que, pelas suas mãos e pelas dos que com ele trabalham, passa também o desenho do futuro e mostra-se preocupado com a desvalorização da profissão pela sociedade e pelos poderes, públicos e privados: “De uma maneira geral, paga-se mal aos arquitetos por se considerar que o seu trabalho não é essencial. O resultado dessa atitude está à vista nas nossas periferias, muito marcadas pela selvajaria urbanística e pela criação de autênticos guetos, desprezando-se, assim, as boas lições dos bairros sociais de meados do século XX. Mas não deixa de ser curioso que a Ordem dos Arquitetos não esteja representada nem na comissão sobre a construção do novo aeroporto nem na discussão sobre a lei da habitação.” Admite não trabalhar para o Estado, que “paga mal em todos os sentidos e se põe a jeito para que as coisas não corram bem”, privilegiando hoje clientes “inteligentes que gostem de explorar conceitos e que nos deem a liberdade de podermos fazer projetos de qualidade, bem pensados.”
À mesa, aguardam-nos arquitetos espanhóis e portugueses (incluindo o filho e o genro de Rebelo de Andrade, que com ele trabalham), mas também o patrono do prémio: Rafael Manzano, andaluz, nascido em Cádis há 87 anos, cavalheiro dos que ainda beija à mão das senhoras. Sentado à minha frente, fala-me do muito que Espanha deve a uma princesa portuguesa, Maria Isabel de Bragança, que vendo-se Rainha de Espanha, teve artes de fundar o Museu do Prado, mas também da importância da batata, importada da América para a Europa na época dos Descobrimentos, quando nos põem à frente uma travessa de puré do viajado tubérculo.
E porque, entre arquitetos, a História sempre vem à baila, Luís Rebelo de Andrade falará sobre a qualidade dos edifícios que os portugueses foram construindo pelo mundo, desde o velho Estado português da Índia até Moçambique. Este gosto pela História, compreende-se ao longo da conversa, não é um gesto de diletante. Encerra um amor ao património edificado, mas também a angústia com o que se deixa aos vindouros e que, na opinião do arquiteto agora premiado, faz parte da essência da profissão: “Hoje somos julgados pelos nossos contemporâneos, mas temos de estar conscientes de que seremos julgados pelas gerações vindouras. Serão elas a tomar a decisão de destruir ou demolir o que estamos a fazer.”
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Entrevista de Maria João Martins . Publicado no DN – 18 Novembro 2023
© Ilustração André Carrilho