Cidades de papel. A arquiteta que constrói cidades à mão com canetas Bic

Categorias: Arquitetura

Ana Aragão trocou a arquitetura pelo desenho, usando canetas Bic e os crayons da filha para erguer cidades através da sua “arquitetura de papel”. Até 5 de abril, a Casa Comum da Reitoria da Universidade Do Porto dá a conhecer o seu trabalho, através da exposição “Galeria X”

Deitada no chão, com o corpo debruçado sobre uma folha de papel, onde a mão treinada para gestos precisos e pacientes edifica linhas e manchas com as velhinhas canetas Bic ou os crayons da filha. Assim se faz uma casa, um mapa ou até mesmo cidades inteiras, reais ou oníricas. “Agrada-me muito a ideia de que com as coisas mais simples é possível conceber obras com alguma sofisticação. A complexidade não tem necessariamente de vir dos materiais, mas talvez mais do pensamento”. Eis a construção do processo criativo de Ana Aragão, arquiteta de formação rendida à ilustração, uma artista portuense que, ao longo de uma década, remodelou a sua prática para uma “arquitetura de papel”. A trave mestra de todo o seu trabalho é sustentada por vários “ses”, pousados assiduamente no telhado do pensamento.

“O meu trabalho de desenho, normalmente muito detalhado, é um encontro entre o real o imaginário”, explica, em entrevista ao Expresso, Ana Aragão. “Pego muitas vezes no real e penso: “E se..? E se a Reitoria da Universidade do Porto fosse uma casa comum? E se a fachada do Teatro Nacional São João estivesse dentro do próprio teatro? E se a estação de São Bento fosse apenas mais uma estação, entre muitas outras, numa espécie de cidade de futuro?”

REALISMO TRÁGICO

É através destas interrogações, vertidas e esbatidas sobre papel de cenário, que o mundo de Ana se expande num universo artístico, caracterizado tecnicamente por um hiper-realismo — ou, como a própria descreve, um “realismo trágico, em vez de realismo mágico” — à vista do público através da exposição “Galeria X”, patente até 5 abril na Casa Comum, na Reitoria da Universidade do Porto.

“Esta mostra é particularmente importante para mim, pelo facto de estar patente neste espaço. Isso faz-me pensar no meu percurso académico, desde a faculdade até agora”, conta a autora, nascida em 1984 e licenciada pela Faculdade de Arquitetura da UP em 2009. “O gosto pela arquitetura de papel surgiu ainda na faculdade. Até ao segundo ano do curso, existe um enfoque muito grande no desenho à mão. Foi precisamente nesse período que surgiu esta paixão”, acrescenta Ana Aragão, sempre domada pela “vontade incontrolável de experimentar materiais diferentes”.

A exibição, comissariada e produzida por Rui Manuel Vieira, é também ela uma casa com três divisões, preparadas para acolher as diferentes fases e faces do trabalho de Ana Aragão. A rota da exposição tem três estações: Galeria Possível, Galeria em Construção (“é um mergulho no meu cérebro; acho, francamente que o meu cérebro está forrado com estas casinhas que se repetem infinitamente”) e Galeria Ideal.

Trata-se de uma odisseia por cenários arquitetónicos e urbanos, vistos através de mais de 40 obras, onde se incluem estudos, esquiços em páginas de cadernos, projetos que nunca saíram da gaveta e textos alusivos ao trabalho da artista.

A primeira parte, Galeria Possível, expõe trabalhos que “mostram a imperfeição do desenho”. “São aqueles que fui capaz de fazer e através deles consegui contar um pouco do meu percurso”, explica Ana Aragão. É nessa mesma sala que os visitantes podem ver a dimensão artística de uma Torre de Babel ou um minucioso mapa de Macau, realizado durante uma residência artística, durante o ano de 2018, na Fundação Oriente.

“Eu não sabia que desenhar um mapa é das coisas mais difíceis de fazer para um arquiteto. Foi altamente desafiante. Achei que ia desenhar na rua, mas entretanto apanhei um tufão. A minha máquina fotográfica também deixou de funcionar. Foi um exercício muito rico e muito intenso de cruzamento de referências”, lembra a artista que, para a conceção da referida obra — onde se bifurcam várias técnicas de perspetiva —, teve de se alicerçar em documentação, bibliografia e na sua própria experiência sensorial da região administrativa especial chinesa.

Outra das obras que sobressai intitula-se “Via Utopia”, onde Ana Aragão recorreu à técnica de impressão em vidro, concebida sob a influência da gravura “Via Appia”, do mestre italiano Giovanni Battista Piranesi. “Coloquei-me de um ponto de vista futuro, olhei para o presente e pensei: ‘E se o presente petrificasse neste momento? E se o news feed do presente de repente encravasse?’” Estava lançada a ideia para a construção de uma cidade hipotética, carregada de símbolos, onde coabitam referências como Homer Simpson ou Darth Vader, máquinas de multibanco, solários, latas de Coca-Cola, sapatilhas, a Trump Tower ou a crise dos refugiados. “Gosto bastante desta obra, porque nos fala da sobreposição dos temas e de uma certa perda de critério na avaliação do que é realmente importante”, frisa a ilustradora.

“Galeria X” apresenta também uma visão da baixa pombalina, desenhada com exímio rigor, com uma linha muito fina e precisa. É, no entanto, uma mancha negra, que desperta a atenção. “Decidi esvaziar a baixa pombalina e criar uma grande praça de ausência”, refere Ana Aragão. “Andei muito tempo a tentar dar um sentido a esta praça vazia. Tentei perceber se este vazio era um chão, se era uma praça física, se era água, se tinha reflexos ou não. Passei imenso tempo nisso, até que fiz as pazes com o meu pensamento e percebi: o vazio é só o vazio. Aceitei que o vazio é só a ausência. É bom podermos deixar coisas por definir”, conclui a artista

 

©Expresso . André Manuel Correia
Imagens © Cláudia Rocha e Ana Aragão

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