Em coautoria com o cardeal D. José Tolentino, o arquiteto Álvaro Siza lança livro sobre a espiritualidade e a transcendência teológica das artes.
“A questão sobre Deus é o não saber explicar” e é também o título do livro redigido a quatro mãos, as de Álvaro Siza Vieira e as de D. José Tolentino de Mendonça, a respeito dos 45 desenhos da autoria do arquiteto, em exposição nos Clérigos, no Porto, e a propósito das interpelações com o cardeal sobre a espiritualidade suscitada pela arte e pela arquitetura.
Retido por questões de saúde, D. Tolentino – poeta e teólogo português, arquivista do Arquivo Apostólico do Vaticano e bibliotecário da Biblioteca Apostólica Vaticana, na Cúria Romana – não pôde estar presente no lançamento do livro que redigiu em co-autoria com o decano dos arquitetos (Matosinhos, 25 de junho de 1933) nem na abertura, decorrida esta terça-feira, da exposição dos desenhos de Siza sobre a Paixão de Cristo.
Nas “pietàs” expostas na Torre dos Clérigos, o “desenhador dos tempos livres”, como o próprio se define, encontra em cada traço os caminhos de meditação sugeridos no livro editado pela “Letras e Coisas”, dirigida por Nuno Higino, que era, em 1996, pároco do Marco, na mesma altura em que foi inaugurado um dos projetos mais marcantes da obra de Siza, o da igreja de Santa Maria.
Álvaro Siza resume todos estes encontros e reencontros: “Desde menino que tenho a mania do desenho. Dá prazer. Ajuda muito na Arquitetura. Mas a maior inspiração é sempre o diálogo com as pessoas que desenvolvem qualquer projeto. Por isso, inspiração não é nada que cai do céu. É o resultado de um trabalho de pesquisa, em que há muitos participantes, hoje mais do que nunca, devido à complexidade dos problemas que envolvem a Arquitetura”.
Do primeiro momento em que começou a pensar na arquitetura como expressão de espiritualidade nem o próprio tem memória precisa. E da inspiração para os 47 desenhos sobre “A Paixão de Cristo”, Álvaro Siza diz que a recolheu no isolamento social forçado pela pandemia, “para não entrar em depressão, num tempo triste”.
A uma das questões formuladas no livro por D. Tolentino – “Como chegou à representação de Cristo?” -, Álvaro Siza sempre encontrou resposta num tempo mais recuado. “Desde pequenino que frequentei a catequese e aí tive contacto com a figura de Jesus, ainda que a pedagogia não tenha sido, talvez, a melhor […] A figura de Cristo está presente com toda a variedade de situações que tem a vida de qualquer um. Há os cristos sofredores, os cristos da serenidade, os cristos do movimento ou do repouso. E os cristos da morte […]”, observa o arquiteto, a desvendar os desenhos que estarão patentes ao público até 30 de setembro.
Vai para três décadas que esta abordagem espiritual ganhou forma nos estiradores de Siza, desde que, no início da década de 1990, a Diocese do Porto encomendou a projeção da igreja de Santa Maria, no Marco de Canaveses, ao arquiteto já nessa altura distinguido como os mais altos galardões, entre os quais o “Nobel” da arte da projeção, o Prémio Pritzker, de 1992.
A igreja de Santa Maria foi inaugurada em 1996 e também materializou o “aggiornamento”, a atualização da ação da Igreja, determinada pelo Papa João XXIII e pelo Concílio Vaticano II, que decretou o novo rumo de abertura e de claridade. Precisamente, coube ao “escultor da luz”, como lhe chamam os congéneres e os especialistas, superar essa dualidade sombra/luz e também vencer uma certa ideia beata do confinamento, que é a própria antítese da projeção.
Nesta nova vaga de significação transcendente e espiritual ressalta desde logo uma certa geometria de despojamento, que a igreja de Santa Maria passou também a simbolizar. Com traços simples e sóbrios, esta igreja mariana tornou-se num ex-libris da arquitetura religiosa e da pretendida pureza espacial em espaço de liturgia. “É uma obra incontornável, em Portugal e no mundo”, afirma Nuno Higino.
A mesma aspiração de espiritualidade e de desprendimento marcam a obra de Álvaro Siza noutros dois projetos “litúrgicos”: o inaugurado, em 2018, o da igreja de Saint-Jacques de la Land (Rennes, França), que outro templo de betão branco, banhado a iluminação natural; e outro ainda em projeto, igualmente cheio de toda a simbologia espiritual, e que há de ganhar forma na Afurada, em Vila Nova de Gaia.
“Tenho mais algumas capelas, mas ainda estou em risco de ser considerado um especialista em museus”, resume Álvaro Siza.