O atelier português Miguel Amado Arquitetos, projetou A Corticeira, um mercado para um edifício existentes na frente ribeirinha da cidade do Barreiro, nomeadamente na Rua Miguel Pais.
Antes de iniciar o projeto e na primeira visita ao local, foi percetível que se tratava de um edifício diferenciado, com história, desde os objetos encontrados no seu interior às conversas com os vizinhos pescadores.
Após essas particularidades, elaborou-se uma pequena investigação, com recurso a artigos, cartografia histórica, publicidade antiga, por outras palavras e em tom de brincadeira, uma investigação arquitetónica.
Descobriu-se que o edifício é uma peça caraterizadora da história da cidade, pelo seu uso, a cidade do Barreiro, segundo o historiador António Camarão, em “1865 o Barreiro possuía já uma fábrica de rolhas de cortiça, cuja anterior data de estabelecimento se desconhece, mas que poderá ter sido a de Victor Garrelon, sita na estrada do Rosário então troço embrionário da atual Rua Miguel Pais. Na carta de levantamento prévio do Plano hidrográfico do Porto de Lisboa podem já observar-se alguns estabelecimentos no referido troço, alguns já com aparentes aterros na frente ribeirinha, o que denota uma atividade comercial ou industrial em estreita relação com embarcadouros. As corticeiras vão começar a fixar-se em torno do núcleo urbano, sobretudo no espaço livre a Sul, arrumando-se junto ao corredor ocupado e reservado pela ferrovia, constituindo-se como o novo horizonte da vila. Desde o início que a artéria corticeira por natureza foi a Rua Miguel Pais. O facto de ser uma via de comunicação principal, a sua confrontação com a frente ribeirinha, e o facto de no seu extremo Sul se encontrar o epicentro ferroviário, tornou-a apetecível também para ser local de habitação, por isso aqui a coexistência afirma-se numa mescla entre Indústria e habitações a Poente, e habitações e uma grande concentração de fabricos em quintais do lado Nascente”.
Esta descoberta, despertou a nossa atenção, levando a questionar se este edifício não era de facto importante e qual seria o seu uso, na indústria corticeira.
Após uma visita ao museu da Memória da Câmara Municipal do Barreiro e na leitura do artigo “A visibilidade da Cortiça Barreirense” do mesmo historiador, menciona a família Barreira & Cª (Irmãos) como um dos produtores, fabricantes e exportadores de cortiça existentes à época no Barreiro, como é possível verificar nos patrocínios a Horácio F. Alves – A Vila do Barreiro – 1940, onde os anúncios mencionavam o Barreiro, como eram idealizados para a exportação, “apresentando-se até em mensagem bilingue visando o mercado externo, ou ostentando o branding, a imagem de marca pelo logotipo que poderia fazer diferenciar as cargas a exportar, permitindo a identificação rápida dos lotes da cortiça, fosse em prancha ou ensacada”.
Posto isto, começamos a investigar pelo nome da companhia que nos levou a encontrar um despacho ministerial, associado a uma planta que segundo o que consta o edifico a intervir tinha como função o processo final de tratamento da cortiça, a sua armazenagem e posterior exportação, através do rio tejo que atracavam no cais atracação de fragatas, coerente com a informação publicada na Portaria, Despachos, Éditos, Avisos e Declarações nº 183 de 6/8/1993 que delimita a demarcação do domínio público Marítimo.
Numa das conversas longas com os pescadores locais, foi nos transmitido que antigamente, à cerca de 70 anos a traz, quando o transporte era feito ainda com recurso a carroças puxadas por animais, era normal a existência de longas filas ao longo da rua, cerca de 100 a 200 caroças, que fechavam por completo a rua Miguel Pais, como é possível verificar na marcas das carroças, existentes nos portões de acesso ao armazém.
Devido a grande afluência e riqueza derivada da cortiça, a companhia teve a necessidade de criar uma casa no interior do armazém de forma a controlar e assegurar que a cortiça não era roubada antes de ser carregada nas fragatas que atracavam no cais. Essa casa, hoje em ruína foi habitada até a cerca de 20 anos atras, pela filha do guarda, existindo no seu interior ainda algumas máquinas da época.
É neste ponto, que percebemos que efetivamente o edifício era o local onde a cortiça era armazenada e posteriormente transportada por Barco para o resto do mundo.
Com o decorrer do tempo e a industrialização dos processos de produção e tratamento da cortiça, tornaram-se incompatíveis com a vida quotidiana e familiar da cidade, dando-se assim inicio ao processo de decadência da indústria corticeira na cidade do Barreiro.
Tendo como ponto de partida esta contextualização história, encarou-se este testemunho como o ponto de partida para a conceptualização arquitetónica do espaço a intervir.
O projeto tem como conceito “dar vida à história”, uma narrativa desenvolvida que consiste na articulação entre duas temporalidades destintas, explorando a “historia” do objeto e, em simultâneo, introduzindo uma linguagem e atmosfera contemporâneas. Através da interpretação do objeto arquitetónico existente procurou-se preservar os elementos da nossa memória coletiva e local. A adição de elementos e o seu redesenho interior teve como princípio a criação de um consenso, um diálogo entre as duas temporalidades. Este diálogo é concretizado na reorganização do interior do edifício existente e na introdução pontual de elementos com linhas contemporâneas. Estas reorganização pontual e adição de volumes no seu interior, de forma subtil e minimalista, procuram não se sobrepor à linguagem existente, destacando a “história” existente e percecionada no local.
Procurou-se reabrir os vãos existentes, recuperar e respeitar o ritmo e a métrica destes na fachada, enquanto padrão organizador na ampliação proposta e trabalhar a luz, enquanto matéria-prima da arquitectura, reveladora da plasticidade escultórica dos espaços interiores e elemento unificador.
A abordagem procura através da arquitetura e da aplicação dos materiais afirmar, privilegiar e divulgar a importância da indústria corticeira na cidade.
A organização funcional/espacial do edifício baseia-se numa divisão entre as zonas de acesso ao público de permanência, as de circulação e as zonas de serviço restritas ao publico.
Sendo uma reabilitação e adaptação de um edifico a um novo uso procurou-se encontrar uma metodologia passível de repetição, de forma a criar um espaço com uma leitura fácil e clara e em simultâneo uma fluidez eficaz, possibilitando o funcionamento independente das diferentes naves.
O edifício privilegia a exposição a Sudoeste/noroeste, tendo a maior área de abertura de vãos nessa orientação, garantindo uma boa iluminação natural e criação de enfiamentos visuais interessantes para o rio tejo e consequentemente para a zona da Alburrica.
As cores claras e o recurso a elementos em vidro permitem a permeabilidade da luz e o seu direcionamento e controlo.
Todos os acessos/escadas aos pisos de mezzanine foram localizados nas extremidades de forma a “libertar” o máximo de espaço, a vista e promover uma circulação consoante o seu uso.
Os processos construtivos, procurou-se utilizar processos tradicionais, preservando os existentes, tecnicamente melhorados com a introdução de novos materiais em termos de isolamento térmico, acústico e de conservação energética.
Tendo em conta se tratar de uma reabilitação, a primeira preocupação foi estudar os volumes construídos existentes e a forma de os preservar e articular com as novas construções a introduzir, bem como estabelecer uma malha geométrica como objetivo de estruturar a distribuição espacial e melhorar a funcionalidade e flexibilidade dos espaços, sobretudo numa perspetiva de economia da construção e do ambiente em termos globais.
É assim que surge a ideia de utilizar uma técnica antiga, digamos primitiva de coser as paredes existentes, agregando em secções, garantido a sua estabilidade. Esta solução possibilita em simultâneo, pois não se pretende esconder o sistema de contenção, criar paredes periféricas “carismáticas” acrescentando história.
A intervenção conta ainda com a criação de um acesso direto para a Rua Miguel Pais, com recurso da demolição de um edifício residencial, em ruína, introduzindo uma imagem contemporânea.
Projeto
A Corticeira
Localização
Barreiro, Portugal
Arquitetura
Miguel Amado Arquitectos
Arquiteto Responsável
Miguel Ribeiro Amado
Imagens 3D
Francisco Ribeiro Amado
Programa
Comercial
Estado
Licenciado
Área de Construção
1657,55 m2
Ano do Projeto
2022