Antonio Covas

A cidade das crianças

Categorias: Território

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A cidade das crianças – Um novo contrato social com a natureza e a cultura

O mundo pula e avança como bola colorida nas mãos de uma criança. Esta podia ser a utopia, o lema da cidade dos amigos das crianças que o futuro construirá em nome do bem comum, das suas crianças, os adultos de amanhã. Não queremos a cidade distópica dos adultos, a cidade IOT, a cidade elétrico-magnética, a cidade dos sensores e drones, a cidade onde mora o capitalismo da vigilância, a cidade das crianças codificadas e aditivadas e da distopia mental à nossa frente.

Imagine, o leitor, que a sociedade da informação e do conhecimento, formada por um número crescente de comunidades inteligentes, redes distribuídas e plataformas colaborativas, se auto-organiza com base numa ética do cuidado e dos bens comuns e que, nessa base, subscreve um novo contrato social com a natureza e a cultura em nome e benefício do futuro das suas crianças.

Imagine o leitor que somos, doravante, uma sociedade onde a atividade humana é organizada para promover o bem-estar das crianças, a sua saúde física e psicológica e as boas relações de vizinhança e sociabilidade, numa perspetiva socio-ecológica em que o papel da paisagem global é determinante para ordenar as relações cidade-campo e uma nova ecologia humana das relações sociais.

Imagine o leitor que somos, doravante, uma sociedade que atribui prioridade política elevada ao espírito e arte dos lugares, em especial, os signos distintivos do território (SDT) e que, por essa via, através da sua visitação e interpretação, criamos nas crianças e nos jovens uma espécie de geografia sentimental pelos territórios de origem e as primeiras memórias sobre a natureza e cultura dos lugares de nascimento.

Imagine o leitor que somos, doravante, uma sociedade que atribui prioridade política elevada à associação entre a cidade intramuros, a formação de uma bioregião e sua reserva estratégica alimentar, promovendo, por essa via, o renascimento de múltiplas formas de agricultura, convencionais, biológicas e ecológicas e, ainda, a criação de nichos de mercado, denominações de origem, marcas coletivas e novos terroirs de visitação. Todas estas referências geoculturais, bem trabalhadas do ponto de vista educativo e pedagógico, criarão um sentimento de identificação e pertença junto dos mais jovens.

Imagine o leitor que somos, doravante, uma sociedade que atribui prioridade política elevada à estrutura ecológica municipal e, nessa base, à promoção de uma oferta complementar de bens e serviços que vai desde o sequestro de carbono até à biomassa energética com passagem pela prestação dos serviços de ecossistema e as artes da paisagem, elementos essenciais à promoção da qualidade de vida dos cidadãos.

Imagine o leitor que somos, doravante, uma sociedade que atribui prioridade política elevada à formação de uma malha urbana policêntrica, no quadro de uma Comunidade Intermunicipal, onde as estruturas ecológicas desempenham um papel central no desenho da interface cidade-campo: circulares verdes, corredores ecológicos, parques agroecológicos, núcleos bioclimáticos, sistemas integrados de micro geração, etc. Esta coleção de elementos naturais e culturais enriquece a experiência de vida das crianças, a sua educação, sociabilidade, imaginação e criatividade.

Imagine o leitor que somos, doravante, uma sociedade que atribui prioridade política elevada à reinvenção do espaço público urbano onde a arquitetura paisagística e a engenharia biofísica nos ajudam a restaurar o metabolismo vital da cidade, a imaginar jardins multifuncionais decorativos, aromáticos e biodepuradores, por meio dos quais se aprende a respeitar os ciclos da natureza, numa atmosfera de conforto, beleza e saúde espiritual. Os jardins do paraíso de que nos falava o arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles.

Imagine o leitor que somos, doravante, uma sociedade constituída por pequenas e médias cidades que fazem da sua política de sustentabilidade verdadeiros programas educativos e recreativos onde o ambiente, a economia circular, o desporto e a saúde pública são a sua principal razão de ser. Todos os ciclos escolares, desde a pré-escola até ao ciclo secundário aprendem e experimentam a importância dos ecossistemas na qualidade de vida dos cidadãos, o restauro de mosaicos paisagísticos e habitats fragmentados, as boas práticas de reciclagem e reutilização de resíduos, a poupança e eficiência energéticas, a recuperação de linhas de água impermeabilizadas e solos agrícolas urbanizados, a restauração de bosquetes maltratados, o reenquadramento paisagístico da edificação dispersa assim como dos logradouros inóspitos e da agricultura urbana existente. E que tudo isto pode ser objeto de visitas guiadas para os estudantes de todas as idades.

Imagine o leitor que somos, doravante, uma sociedade que atribui uma prioridade política elevada aos valores do urbanismo saudável, onde os equipamentos pesados não sejam os atores principais do desenho urbano, mas onde, para combater a monotonia dos subúrbios e a sua monofuncionalidade, se procede à conversão de uma cidade artificialmente zonada e compactada numa cidade que respeita a morfologia dos elementos naturais e os valores cénicos da paisagem humanizada. A articulação e mobilidade periurbanas devem levar em conta a forma como se programam os equipamentos coletivos, os espaços verdes, os corredores ecológicos e suas ligações com as amenidades rurais.  De resto, esta conversão da cidade zonada deve estar plasmada e ser bem visível no centro interpretativo da cidade e a sua natureza estética e pedagógica ser bem aproveitada para os programas educativos, recreativos e culturais.

Imagine o leitor que somos, doravante, uma sociedade onde as áreas de paisagem protegida (APP) não são santuários ou manifestações corporativas de escola mas, antes, pela sua natureza e sensibilidade, espaços privilegiados de produção, conservação e recreação, verdadeiros complexos psicopedagógicos para os mais e menos jovens, segundo uma conceção de ordem geral que considera a biodiversidade, os ecossistemas e os serviços de ecossistema como elementos essenciais à vida natural e cultural de toda a comunidade.

 

Notas Finais

Todas as considerações anteriores têm um pressuposto fundamental, só há uma cidade para as crianças se respeitarmos a ética do cuidado e dos bens comuns, ou seja, se os valores humanos prevalecerem sobre os interesses egoístas, se as instituições prevalecerem sobre os mercados, se os bens comuns e a utilidade social do respeito prevalecerem sobre o narcisismo dos indivíduos e o oportunismo dos franco atiradores (free raiders).

A cidade utópica das crianças é, antes de mais, a cidade dos amigos das crianças. A natureza e a cultura são os instrumentos vivos à nossa disposição para que se concretize o sonho que comanda a vida. O lado psicopedagógico da cidade das crianças ilustra bem como a fusão entre a natureza e a cultura pode ser altamente criativa. Os serviços educativos, culturais e recreativos dos agrupamentos escolares podem converter-se em comunidades inteligentes e plataformas colaborativas onde o sonho que comanda a vida pode germinar. Eles podem ser o lugar de muitas memórias, de uma linguagem viva e expressiva, de muita liberdade criativa, de experiências enriquecedoras de comunicação e sociabilidade. E de muitos amigos para a vida.

 

Artigo de António Covas publicado na Revista Smart Cities, nº44

Foto ©DR

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