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A recuperação dos Centros Históricos e a reabilitação urbana assume actualmente uma importância redobrada. As intenções legislativas têm procurado responder à tendência de interesse generalizado, procurando agilizar os procedimentos de licenciamento de obras e requalificação de edifícios mais antigos. Neste âmbito inserem-se as últimas alterações ao Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE) e Regime Jurídico da Reabilitação Urbana (RJRU).
Sucede que, os profissionais do sector – muito em especial, os arquitectos, engenheiros, projectistas – não sentem este posicionamento, tendo presente os sucessivos problemas com que se deparam na reabilitação de edificações construídas há vários anos e por isso construídas à luz de um enquadramento legal muito diferente do que existente actualmente. A amplitude das problemáticas é de diversa índole, contudo, é evidente a dificuldade que os profissionais do sector sentem quando se encaminham junto das entidades licenciadoras, para em nome do dono da obra poderem obter as informações necessárias à legal tramitação, e as respostas que obtêm não são coerentes e muitas vezes indutoras de comportamentos que podem vir a revelar-se prejudiciais no futuro.
Exemplifiquemos de forma simples: a reabilitação de um edificado onde se detecta uma pré-existência que era admissível na data da construção da moradia e que em face do plano actual já não será admissível. É fundamental perceber que qualquer acto novo no licenciamento da reabilitação que se venha a praticar, sem a devida salvaguarda do pré-existente, pode significar a análise do pedido exclusivamente à luz da nova lei, o que poderá configurar-se, per si, como uma eventual impossibilidade de o tornar legal. Existe uma tendência generalizada de tratamentos das edificações, mesmo as com várias dezenas de anos, segundo as regras dos planos urbanísticos em vigor. À posteriori, quando os imóveis são alvo por exemplo de inspecções acabam por ser considerados, pelos próprios serviços da entidade licenciadora, desconformes aos regulamentos e às regras do licenciamento. Não obstante, o facto de as obras de reabilitação/recuperação de um imóvel antigo estarem “desconformes” com o previsto nos planos urbanísticos (actualmente vigentes) não significa, necessariamente, que estas não pudessem ter sido levadas a cabo ou que não possam vir a ser licenciadas, desde que com as devidas salvaguardas.
Neste contexto faz sentido aludir à Garantia do Existente (principio da protecção do existente), que tem como fundamentos o principio da não retroactividade das disposições dos planos urbanísticos e da protecção da confiança e inclusive o princípio da propriedade privada, salvaguardado na Constituição da República Portuguesa. Nas palavras de ALVES CORREIA1 , o plano deve produzir efeitos apenas para o futuro, razão pela qual deve respeitar as edificações existentes à data da sua entrada em vigor. O RJUE2 prevê no seu artigo 60.o este instituto, tratando-se da consagração, nas palavras do autor supra referido, de uma “justa ponderação e superação de conflitos de interesses coenvolvidos nos planos”. Juntamente com o principio da não retroactividade, temos o principio tempus regit actum, daí resultando que as entidades licenciadoras competentes na área do urbanismo estão obrigadas a respeitar a existência das edificações que tenham sido construídas no respeito pelas regras do Direito da altura. Mesmo dando-se o caso de, segundo as regras actuais, esses imóveis não fossem suscetíveis de serem licenciados. “O direito de construir reconhecido por um acto de licenciamento válido e eficaz incorpora-se definitivamente na esfera jurídica do respectivo titular e passa a gozar da protecção plena que é concedida ao direito de propriedade privada”3.
No que concerne a uma vertente “activa” (por contraposição à vertente mais “passiva” acima explicitada), esta encontra-se consagrada sobretudo no no 2 do artigo 60o do RJUE. Entendida como fundamento para obtenção de um direito à autorização para a realização de obras de reparação, desde que estas permaneçam conforme a identidade originária do imóvel. Na sequência deste dispositivo legal, deverão ser licenciadas obras de reconstrução que, pese embora o facto de não cumprirem as regras em vigor no momento da obra, estas digam respeito a edificações legalmente existentes anteriores ao referido normativo e essas edificações não originem ou agravem a desconformidade com as normas em vigor ou tenham, como desígnio, a melhoria das condições de segurança ou salubridade.
Por conseguinte, verificamos que existem na lei uma séria de “mecanismos” passiveis de serem usados pelas entidades licenciadoras no sentido dar nova vida aos edifícios mais antigos dos seus centros urbanos sem que estes percam os seus traços característicos, que muitas vezes refletem diferentes períodos da história da cidade e até mesmo diferentes estilos arquitetónicos, e que urge serem preservados. Em resposta a essa necessidade, surge a figura da Legalização4 como uma das medidas de restabelecimento da legalidade urbanística. Na verdade, os Municípios, confrontados com uma construção ilegal devem, ao abrigo do principio da proporcionalidade e segundo uma justa e adequada ponderação dos interesses envolvidos, analisar a possibilidade de a construção em análise poder, ou não, vir a ser legalizada5.
Concluindo, convém reforçar a ideia de que os profissionais do sector devem analisar cuidadosamente as informações prestadas pelas entidades licenciadoras, não caindo na tentação desenfreada de seguir acriticamente as informações recebidas (que certamente são prestadas na melhor das intenções). Esta análise ponderosa, em especial que normativos são efectivamente aplicáveis no caso de existirem pré-existências, pode fazer a diferença no sucesso da admissibilidade legal da reabilitação levada a cabo.
1 ALVES CORREIA, Manual de Direito do Urbanismo Volume II, Almedina, 2004, pp. 496-497
2 Decreto Lei no 555/99, de 16 de Dezembro (versão actualizada)
3 CLÁUDIA MONTEIRO, O Domínio da Cidade: A propriedade à Prova no Direito do Urbanismo, AAFDL, 2013, P. 281.
4 Artigo 102o-A do RJUE (cf. artigo 60o RJUE e artigo 51o RJRU)
5 Cf. Acórdão do STA de 14.12.2005, processo no 0959/05; Acórdão do TCAS de 19.01.2012, processo no 05261/09; Acórdão do TCAN de 09.09.2011, processo no 00367-A/98;
Autores: João Quintela Cavaleiro (advogado) e Álvaro Pinto Marques (advogado)
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