As melhores fotos de arquitetura do mundo são tiradas por este português

As melhores fotos de arquitetura do mundo são tiradas por este português, Fernando Guerra deu a vida pela profissão e, aos 52 anos, é companheiro de viagens de Álvaro Siza Vieira.

Estávamos em 2003 e a revista “Wallpaper” era ainda “uma espécie de instituição” na cena da arquitetura. Fernando Guerra, arquiteto de formação e fotógrafo de hobby, aventurara-se há poucos anos numa profissão que procurava fundir as duas paixões: a de fotógrafo de arquitetura. Tinha um estilo muito próprio e que quebrava com algumas das regras e costumes da área.

“Nesse ano deram-me um trabalho e disseram que eu estava completamente proibido de usar pessoas, apesar de eu lhes ter dito que fotografava sempre com pessoas”, recorda. Nesses anos, explica o veterano fotógrafo de 52 anos, a fotografia de arquitetura “era uma coisa muito estéril”, no sentido em que se esvaziavam os cenários. “Fazia-se um alçado, depois outro alçado. Isso não me interessava-de todo.”

Ri-se quando recorda o aviso da “arrogante” revista. “Dá-me vontade de rir porque eu continuei a fazer isso durante os últimos 20 anos hoje olho para a capa e vejo lá fotos minhas com pessoas”, nota. “No fundo, o que aconteceu é que eu fiz a mesma coisa e o mundo acabou por mudar.” Ou, por outras palavras, o mundo haveria de lhe dar razão.

Fernando Guerra não é o mais distinguido fotógrafo de arquitetura no País. É um dos mais requisitados em todo o mundo. Um trabalho que partilha com o irmão Sérgio, cinco anos mais novo. Ambos arquitetos de formação, dividem esforços para dar a conhecer alguns dos projetos mais bonitos do planeta.

Sérgio é quem trata de todas as primeiras abordagens, do planeamento, dos voos, da agenda. Fernando é o fotógrafo — o único. Isto apesar de a empresa contar hoje já com mais trabalhadores. Na hora de captar a beleza de cada casa, hotel ou museu, tudo se transforma num one man show.

Começou a fotografar em 1986, tinha apenas 16 anos. Tinha uma máquina analógica oferecida pelos pais que empregava no hobby. “Hoje em dia toda a gente faz fotografia a toda a hora, mas na altura era mesmo preciso querer. Andávamos com um saco só para as lentes, era tudo analógico”, recorda.

Nunca soube muito bem o que queria fotografar. Sabia apenas que lhe dava prazer captar pessoas, “instantes irrepetíveis”. Mas esse prazer nunca foi suficiente para o demover do objetivo principal de se formar em arquitetura. Completou o curso, fez as malas e mudou-se para Macau onde trabalhou durante cinco anos.

“Foram anos muito formativos. Fotografava todos os dias, mas não arquitetura. Quando ia e vinha da obra, fotografava furiosamente nas ruas. Na obra, não tirava uma única foto. O que me interessava era a vida do dia a dia, como se fosse um jornalista do quotidiano. Dava-me gozo apanhar o momento.”

De regresso a Portugal e ao lado do recém-formado irmão — que o ia alertando para os novos e entusiasmantes edifícios que iam nascendo — , decidiram experimentar a fotografia de arquitetura. O cenário nacional era desolador. “Havia uma pessoa a fazê-lo em Lisboa, outra no Porto. Já eram pessoas mais velhas. Ninguém queria fazer fotografia de arquitetura”, conta.

“Hoje tenho que explicar às pessoas mais novas que esta profissão não era propriamente cool. Ser fotógrafo de casamentos ou de arquitetura nos anos 90 era igual. O que aconteceu? O mundo mudou. Fotografar arquitetura era uma coisa muito geek.”

Não o faziam apenas por desporto. O plano era simples e eficaz: fotografar os edifícios, contactar os ateliês e aliciá-los. “Quando dizíamos que éramos fotógrafos, ninguém queria saber, mas quando se preparavam para desligar, ele dizia que já tínhamos fotografado o edifício”, explica. Já que o trabalho estava feito, não custava espreitar. E, assim, Fernando e Sérgio já tinham dado o primeiro passo.

“Era refrescante porque ninguém queria fazer esse tipo de fotografia. E como já as tínhamos, lá diziam ‘vá, envie-lá’. As coisas começaram a acontecer e passado 24 anos estou aqui dentro de um carro a voltar de quatro dias de sessões seguidas no sul de Espanha.”

Foi no regresso de Gibraltar que Fernando Guerra, ainda ao volante, recordou os primeiros passos da carreira num Portugal “onde havia dinheiro para tudo”. “Entre 1999 e 2010 fez-se tudo, inaguravam-se museus e teatros todos os dias. Portugal estava a ter muita atenção e eu era o fotógrafo de serviço. Sem querer, sem nunca ter pensado muito nisso, acabei por ficar conhecido lá fora.”

Para isso muito contribuiu a sua visão que contrastava com a dos concorrentes. No arranque do século criou o seu site, o Últimas Reportagens, onde decidiu publicar livremente as suas imagens. Pelo contrário, os outros fotógrafos da área procuravam a rentabilidade máxima: primeiro, vendiam as fotos aos ateliês; depois vendiam-nas novamente às revistas.

“Os outros tinham sites fechados, só se acedia com palavras-passe. Sempre achei que se já tinha sido pago por um trabalho, estar a revender parecia-me uma perda total de energia”, explica. “Quis que o meu site fosse uma biblioteca de arquitetura.”

Consigo, para a fotografia de arquitetura, trouxe também a paixão pelas pessoas. Nunca cedeu um milímetro na forma de fotografar. Uma ambição difícil de concretizar numa área onde todos se habituaram às fachadas frias e inabitadas. Em Portugal, ganhou-se também o hábito de captar casas vazias, sem móveis, sem nada que pudesse desvirtuar o projeto do arquiteto.

“Eu queria fotografar arquitetura habitada, queria ter lá o cão e o gato. E tinha todos os editores do mundo a rejeitarem publicar casas com pessoas”, recorda. “Para mim, a fotografia bem-sucedida é a que é difícil de repetir. Como lidamos com coisas imóveis, a graça está, para mim, em mostrar o que se passa à volta delas, como a casa respira com aquela família lá dentro — e não apenas fotografar o alçado nascente, depois o poente…”

Nunca optou pela abordagem clássica e diz até que a arquitetura é “quase uma desculpa para fotografar pessoas”. “Mas nunca me esqueço de que estou a fazer um serviço. Isto não é sobre mim. É sempre sobre a obra de outra pessoa. Eu estou ali para fazer uma coisa muito simples, passar a notícia. Sou um mensageiro.”

Ri-se quando tentam descortinar na sua opção um objetivo mais frio, mais calculista. “É por uma questão de escala”, dizem-lhe muitas vezes. “E eu rio-me. Não é para dar escala, é para dar sentido.” O mundo deu-lhe razão e hoje as fotografias com pessoas são “as que as pessoas mais gostam”.

Num dos seus últimos projetos, viajou até à Suíça. O arquiteto não o acompanhou e deu por si sozinho com a família que habitava a casa. “A filha mais velha estava a tocar piano. Os pais estavam a fazer o jantar e o filho na mesa a fazer os trabalhos de casa. E eu no canto, sozinho, como uma mosca a ver aquela família, de lágrimas nos olhos”, confessa. “Aquilo é tão íntimo e eles deixaram-me entrar naquele bocadinho de vida, porque confiam em mim, e isso é maravilhoso.”

Dar a vida pela profissão

Dez dias antes do primeiro confinamento, a morte do pai dava-lhe a sua primeira “wake up call”. Nas semanas seguintes, fechado em casa e obrigado a parar pela primeira vez em vinte anos de profissão, ficou sozinho com os seus pensamentos.

“O aeroporto para onde fugia sempre estava parado. O mundo parou. O meu pai já tinha mais de 70 anos e eu pensei que se a minha vida for como a dele, tenho mais 20 anos pela frente. E pus-me a pensar como é que queria que fossem esses últimos anos”, confessa.

O flashback levou-o a fazer contas. No seu site contam-se mais de 1300 projetos, com a contagem interrompida em 2019. São mais de 80 projetos por ano, muitos fora de Portugal. Nunca tirou férias e o verão, dada a abundância do sol, é a sua época mais agitada.

Aos 52 anos, é pai de duas filhas. “Não digo que foram órfãs de pai, mas… Quando se começa a jogar neste campeonato, a ter muitos clientes, é difícil dizer que não. E enquanto estou a fazer isso, não estou a viver a minha vida. A minha vida é ser fotógrafo de arquitetura a full time.”

O negócio prospera. A lista de espera é “enorme” e por vezes os clientes chegam a esperar um ano pela visita de Fernando. A vontade de abrandar, que foi crescendo desde a pandemia, não surtiu propriamente efeito.

“No ano passado apanhei 45 aviões. Em 2019 foram 60. O meu grande plano para reduzir o trabalho não está a funcionar incrivelmente bem (risos). Naturalmente quero tirar mais partido do meu tempo, porque o tempo é uma coisa que eu não vou recuperar. Nunca vou recuperar as férias que não fiz com as minhas filhas, mas acho que viveram coisas boas comigo. Não há coisas perfeitas, pais perfeitos. Fiz o melhor que conseguia ao mesmo tempo que criei um negócio que ninguém queria fazer.”

O seu processo explica também o pouco tempo que tem para dedicar a outros prazeres da vida. É o irmão que trata de todo o processo. Fernando nunca quer saber nada sobre o próximo trabalho. Não quer ver qualquer imagem. A forma mais fácil de conseguir deixar-se deslumbrar, de despertar a curiosidade natural, é tendo um “olhar fresco”.

“Nunca vou recuperar as férias que não fiz com as minhas filhas (…) não há pais perfeitos. Fiz o melhor que conseguia ao mesmo tempo que criei um negócio que ninguém queria fazer”

Como um agente secreto, recebe um destino, uma data, um voo. Faz a mala e vai. No dia em que falou com a NiT, regressava de um trabalho intenso de quatro dias passados de manhã à noite na obra. Chega com a primeira luz do dia e só abandona o local na noite escura.

“Sou completamente movido pelo sol, é ele que me diz o que devo fotografar. Vou seguindo o sol e descobrindo coisas que a casa tem que não tinha umas horas antes. Não passo lá três ou quatro horas, fico lá o dia todo, coisa que poucos faziam”, explica. A sua formação como arquiteto é, naturalmente, uma mais-valia. “Rapidamente consigo perceber o que funcionou bem, aquilo de que o arquiteto mais se orgulha, mas também o que ele prefere que ninguém veja porque não correu lá muito bem.”

Depois é pôr em prática o que o tornou famoso. “Preciso de perceber o fluxo de pessoas, quem entra, quem sai”, diz. E se por vezes aproveita o facto de as próprias famílias estarem presentes, noutros casos trabalha com o que tem. “Visito realidades completamente distintas. Num dia estou em Leiria numa casa normal de classe média, no outro dia no Brasil numa casa com 13 empregados.”

E se ser um dos mais requisitados fotógrafos de arquitetura pode dar-lhe uma aura de inacessibilidade, Fernando garante que não. “É uma ideia errada. Falo e respondo a toda a gente. Adoro trabalhar com arquitetos famosos e com ateliês que ninguém conhece. Isso dá-me um gozo tremendo”, diz. “Somos todos pessoinhas. Quero continuar a trabalhar com miúdos acabados de sair da faculdade, mas também com o Siza. Preciso dessa variedade.”

Sempre sem esquecer que tem um trabalho a fazer, admite que se deixa mergulhar nos pequenos contos e narrativas que as casas permitem. ”Gosto muito do improviso. Se existem jardineiros, usamo-los. Se a empregada doméstica estiver a fazer as limpezas, faço a sessão através dessa lente, do dia de uma empregada de limpeza a tratar da casa.”

Fernando chega sempre artilhado com material apto “para fotografar arranha-céus ou uma cadeira”, sejam os figurantes totais desconhecidos ou mesmo as famílias de clientes e arquitetos. “Depois é tentar ser feliz no meio disto tudo.”

O fotógrafo de Siza

Trabalhava em Macau quando Siza desenvolvia inúmeros projetos por lá. Fernando foi, aliás, nos seus tempos de arquiteto, uma engrenagem na obra do mestre.

“Trabalhei sob o programa urbanístico que ele fez. Lembro-me que lhe chamava imensos nomes porque ele obrigava-me a não fazer palas com mais de 30 centímetros. E eu era novo, queria fazer palas enormes”, conta. “De repente, passado uns anos, estou com ele em Macau, a viajar ao seu lado, a dizer-lhe todas as coisas pelas quais passei. Nunca me passou pela cabeça que pudesse acontecer.”

Siza era um dos clientes dos tais “dois velhos fotógrafos de arquitetura” dos anos 90. Foi aí que começou a relação com Fernando Guerra. Começou com pequenos trabalhos, que se foram sucedendo e aumentando de frequência. Quando deu por si, era o fotógrafo que estava de chamada para um dos maiores vultos da arquitetura.

“Sempre que me perguntam qual o arquiteto mais especial com quem trabalhei, respondo sempre o Siza. Se eu der outra resposta, o mais provável é que alguém fique chateado. Assim, se disser o Siza, toda a gente bate palmas. É unânime (risos)”, conta. “Falo sempre nele porque é dos trabalhos mais especiais que fiz na minha vida. Para os arquitetos, estar com o Siza é como para os beatos estar com os pastorinhos.”

Admite que teve a “sorte” de poder acompanhar e viver do lado mais pessoal de Siza, com quem já trabalha desde 2005. “Fui com ele sobretudo para o oriente, Coreia, Japão, Taiwan. Fui com ele a Londres, quando ele recebeu a medalha dada pela Rainha de Inglaterra.”

Apesar de não trocar a arquitetura pura e dura pela fotografia, é um admirador confesso da paixão. “Noutras carreiras, alguém com 30 e muitos pode estar já no topo. Com essa idade, um arquiteto está apenas a começar. O Siza, já quase com 90 anos, continua a trabalhar. E no dia antes de ele se ir, tenho a certeza que ainda estará a desenhar.”

No Instagram de Traveling With Siza, Fernando Guerra guarda um diário privado das suas viagens com o famoso arquiteto. Mas há muito mais nos seus arquivos, à espera do momento certo para verem a luz do dia. “Quando dei por mim, tinha um portefólio grande dele que é suposto um dia ser um livro. Mas eu não gosto de livros porque são coisas acabadas e a minha história com ele ainda não terminou.”

© Texto de Daniel Vidal . NiT

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