Entrevista a Gonçalo Byrne

Entrevista a Gonçalo Byrne – “Pensar que os problemas se resolvem com cimento é uma ilusão” O PRR é uma oportunidade, mas o mercado é afetado sobretudo pela falta de uma visão estratégica e de políticas públicas consistentes.”

Para Gonçalo Byrne, presidente da Ordem dos Arquitetos, distinguir aquilo que é conjuntural do que é estrutural é muito importante. Se a conjuntura mostra que a atividade económica está a recuperar; estruturalmente persiste um enorme desequilíbrio entre oferta e procura, sobretudo pela demissão do Estado.

Qual é a sua perspetiva sobre a evolução recente da atividade de reabilitação urbana e de construção, bem como do mercado imobiliário e das obras públicas?

Devemos distinguir aquilo que é conjuntural do que é estrutural. Verificamos que houve uma ligeira recuperação da construção nova face à travagem expressiva da década anterior; e que a atividade de reabilitação conheceu algum dinamismo em anos recentes.

A pandemia teve os seus impactos, mas não paralisou o setor, como aconteceu noutras atividades, e isso foi muito importante. Vemos também que há novas empresas a surgir e que o número de insolvências tem vindo a diminui. Isto é, evidentemente, positivo, mas estamos longe do que seria necessário para mitigar as enormes distorções que caracterizam este mercado em Portugal, com consequências sociais gravíssimas.

Temos duas realidades paralelas: por um lado, existem em Portugal cerca de 700 mil casas devolutas, mas, por outro, há falta de habitações. Este desequilíbrio entre oferta e procura impulsionada em parte por investidores estrangeiros levou a que o preço das habitações, por exemplo, tenha subido em média 80%, desde 2010, e que as rendas tenham subido 25% no mesmo período. Nas obras públicas, assistiu-se a uma diminuição significativa do investimento público. O mercado, na sua generalidade, é mais afetado pela ausência de uma visão estratégica e pela falta de políticas públicas consistentes, do que propriamente pela conjuntura.

Considera entoo que a evolução do nosso mercado é sobretudo fruto da ausência de políticas públicas consistentes?

O Estado tem-se demitido, nas últimas duas décadas, de desempenhar o papel que lhe compete, de regulador e de estabilizador destes mercados. A conjuntura conta, claro, e muito, como se vê pelos aumentos brutais dos custos de construção, mas se na base os problemas persistem, ou até se agravam, por via de uma burocracia excessiva e “hiperlegislação”, dificilmente assistiremos à libertação do potencial deste setor para a evolução qualitativa do país, para a criação de valor e de emprego. A construção, em sentido lato, é um motor da economia, mas é também um promotor da qualidade de vida e um importante nivelador social. Enquanto não houver uma visão e um consenso sobre isto e os arquitetos cá estão para pressionar os poderes públicos por melhores políticas estes setores serão menos resilientes do que o desejável na estrutura da economia e sociedade portuguesas.

No contexto que acaba de enunciar, como é que vê a evolução desta situação em 2023?

Estou animado, confesso, com a remodelação governamental recente, que nos trouxe a novidade de termos uma ministra da Habitação. O primeiro-ministro elevou a fasquia política no setor, e o setor não deixará de corresponde; mas será exigente na relação e nas respostas. Politicamente, este foi um sinal muito importante para um país tão desequilibrado como o nosso no acesso à habitação, e com um mercado de arrendamento simultaneamente distorcido e incipiente.

Entrámos em 2023 com uma guerra absurda na Europa, ainda sem fim à vista, e com uma inflação ainda sem o devido controlo, com a perspetiva de novos aumentos na taxa de juro por parte do BCE. E, finalmente, com disrupções que ainda se fazem sentir em algumas cadeias de abastecimento, o que origina falhas no fornecimento de materiais e causa aumentos nos respetivos preços. Mas se houver políticas públicas que mitiguem estes efeitos, que reduzam a carga fiscal, que diminuam prazos de licenciamento, que aliviem as empresas, então podemos olhar para 2023 com mais confiança.

No imobiliário, apesar do aumento dos custos com o crédito, não antecipo que haja uma redução expressiva da atividade, porque a oferta continua desajustada da procura e porque, na composição dessa procura, estão muitos cidadãos estrangeiros que têm recursos financeiros para pagar preços mais elevados. O país tem de perceber que sem políticas públicas adequadas para a habitação, que colmatem este enorme desequilíbrio, não vamos ter habitações a preços acessíveis para a generalidade dos portugueses. Por outro lado, o PRR pode, e deve, desempenhar um papel social muito importante na agenda da construção de novas habitações, com soluções adequadas, com bom desempenho energético, com conforto, em suma, com qualidade, para agregados com necessidades.

Referiu o PRR. Que impacto é que os programas associados poderão ter na atividade de construção e reabilitação e no mercado imobiliário?

Temos de olhar para este PRR como uma oportunidade para resolver carências atuais, mas também para lançar as bases de novas políticas para o futuro. A intervenção pública na correção das distorções do mercado é fundamental, mas achar que os problemas se resolvem com cimento é uma ilusão. Se a par do acompanhamento da execução destes investimentos não forem desenvolvidos instrumentos para abordar o funcionamento do mercado como um todo estaremos a mitigar alguns sintomas, mas não estaremos a resolver a origem do problema.

A execução do PRR nesta componente específica da habitação deve, em nosso entender, privilegiar a qualidade do edificado. Termos qualidade na arquitetura significa termos qualidade de vida, qualidade ambiental, qualidade urbanística. A arquitetura tem um enorme papel social e económico a desempenhar e, por desconhecimento ou desatenção, é algo que não é valorizado ou percebido pela maioria dos decisores.

 

Entrevista a Gonçalo Byrne ao Jornal de Negócios

Fonte: Negócios

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