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Esta entrevista foi realizada com o objetivo de dar a conhecer um pouco do pensamento de Helena Roseta, a arquiteta que foi homenageada no Dia Nacional do Arquiteto 2022, cuja Sessão Solene teve lugar no dia 12 de julho, às 18h30, no auditório Nuno Teotónio Pereira, na Sede Nacional da Ordem dos Arquitectos.Como se sente ao receber a homenagem no DNA?
Ser reconhecida é sempre algo que naturalmente honra uma pessoa, mas ao mesmo tempo também quer dizer que já tenho uma provecta idade. É um sentimento divertido sentir que felizmente tive o privilégio de viver até chegar aqui, à idade das homenagens.
Se tivesse que escolher um momento do seu percurso, qual destacaria?
Eu já fiz tantas coisas na vida que me é difícil escolher só um. Desde gerir o Botequim da Natália Correia, até outras coisas mais… Já fiz as coisas mais extraordinárias, portanto estou sempre a pensar o que vou fazer a seguir, tenho dificuldade em olhar par a trás. Gosto mais de olhar para o que ainda posso fazer do que para aquilo que já fiz.
E o que é que ainda gostaria de conseguir concretizar?
Neste momento quero acabar o programa dos Bairros Saudáveis, projeto em que tenho estado envolvida desde que me reformei, há dois anos, o meu programa de envelhecimento ativo, que na verdade tem sido verdadeiramente ativo.
Como está a correr?
Está a resultar muito bem. Há 242 projetos no país todo, financiados por um programa que eu estou a coordenar e que para o qual consegui 10 milhões de euros. Tem dado muito trabalho, mas é muito interessante, dirigido às comunidades mais vulneráveis. Chama-se bairros saudáveis por isso mesmo. O desafio é identificar os bairros que têm problemas e procurar soluções para melhorar as condições de vida. É muito interessante que numa altura em que temos más notícias por todo o lado, há uma energia disponível, sobretudo nestas comunidades, para mudar, para fazer coisas. Assim lhes ofereçam meios. Poder contribuir para isso é um privilégio.
Concorda com a ideia de que o direito à habitação é a menina dos seus olhos?
A habitação é a minha causa fundadora. Quando tinha 19 anos, era eu estudante da arquitectura, defrontei-me com as cheias catastróficas de Lisboa. Corria o ano de 1967. Eu percebi que de facto ter ou não ter casa condigna faz a diferença entre estar vivo ou estar morto. A partir daí foi sempre a trabalhar nesse sentido.
Como é ter sido pioneira, no feminino, quer na defesa da arquitectura, como presidente da OA, quer como cidadã politicamente envolvida, nomeadamente na questão do direito à habitação?
Não me sinto pioneira. Houve mulheres extraordinárias a fazer coisas com muito significado sobretudo desde o século XIX. Na arquitectura poderia falar da Olga Quintanilha, que também já foi presidente da Ordem dos Arquitectos, mas há outras mulheres importantes que poderia nomear. Muitas vezes o trabalho das mulheres é pouco visto e pouco reconhecido, muitas vezes acontece que são casadas com outros arquitetos, trabalham em conjunto, mas fala-se mais dos maridos do que delas, mas o seu papel é muito relevante e interessante. É verdade que a profissão não era muito feminina, mas essa realidade está a mudar. É natural que cada vez mais passem ser elas a ocupar lugares de destaque, a ganharem os prémios e a receberem as homenagens.
Nunca sentiu demasiadas vezes, quer na sua atividade política autárquica e parlamentar, quer na sua atividade profissional, que era só uma mulher no meio de demasiados homens?
Isso aconteceu bastantes vezes, mas sempre que acontecia a primeira coisa que fazia era chamar mais mulheres. Sempre que na vida me convidam para algo em que eu sou a única mulher, pergunto sempre onde é que estão as outras. Não devemos aceitar, nem normalizar, que esteja uma mulher no meio de uma data de homens, temos que exigir que estejam mais. É uma luta que passa de geração em geração, para que cada vez mais haja grandes mulheres com destaque. As minhas filhas desde logo são grandes mulheres, lutadoras pelos direitos das mulheres, e hoje é uma alegria olharmos para a Comissão da União Europeia e vermos uma Ursula Von Der Leyen a fazer um trabalho extraordinário, que está a dar conta do recado numa altura dificílima. A nível mundial estão a aparecer mulheres absolutamente extraordinárias, como é o caso da Secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, que já tinha estado noutras posições de destaque, e que está a fazer um trabalho fora de série. Isto para dizer que não é possível ignorar hoje que o mundo tem mulheres e homens, e não apenas homens.
Há mudanças radicais desde o tempo em que eu me comecei a envolver, que como sabe foi antes do 25 de Abril, em ditadura. Eles [Estado Novo] até tinham umas mulheres muito simbólicas, mas meramente em lugares decorativos. Mas as diferenças e as mudanças são avassaladoras, em boa medida pelo papel de mulheres como a Natália Correia, uma mulher que muito antes de toda a gente fez coisas extraordinárias na defesa da liberdade e na veemência com que lutou pela causa das mulheres. É sem dúvida uma das grandes referências da minha vida.
Sendo o direito à habitação uma das suas grandes batalhas, como olha para a realidade do sector, nomeadamente com o aumento dos custos quer na aquisição quer no aluguer?
Os problemas mudam de natureza quando mudam de escala, foi algo que aprendi há muitos anos com um arquiteto amigo francês. Com a globalização financeira e a globalização política que a acompanhou, e a globalização imobiliária que está sempre por trás da financeira, mudou de escala todo o processo imobiliário. Essa realidade significou que casos como o de Portugal, os preços passassem para uma escala global e não para a escala que tínhamos ou aquela que se adequa ao poder de compra da maioria da população. Com a liquidez de dinheiro que havia para investir, com um país que é relativamente seguro, e onde as coisas eram muito mais baratas, houve uma captação de investimento estrangeiro muito significativa, com a atração de fundos de investimento, isto num país onde as taxas de juro estiveram muito baixas durante muitos anos. O capital existe pelo que tem que ir para algum lado, e tende a investir naquilo que os ingleses chama de “Real Estate”, ou seja, no imobiliário. Este conjunto de fatores colocou uma pressão brutal sobre as famílias, que não aguentam nem têm forma de acompanhar face ao desequilíbrio existente ao nível dos vencimentos e da respetiva capacidade económica da generalidade dos portugueses. Isto cria uma desproporção muito grande que importa dar resposta. Temos que mudar a maneira de encarar isto. A habitação não pode ser apenas um bem em que as famílias são obrigadas a fazer poupança forçada para conseguir pagar um empréstimo. Nós temos que olhar isto como um direito fundamental, e isso implica uma mudança real de paradigma, ou seja, implica que haja uma capacidade de mobilização quer de dinheiros públicos, que agora até vai haver com o PRR, mas sobretudo de muita habitação que não está a uso de ninguém, que está espalhada um pouco por todo o país, mas com muito significado por exemplo na cidade de Lisboa, que tem que ser mobilizada para resolver o problema das famílias. Ela pode ser mobilizada até por dentro do mercado, mas tem que ser mobilizada. O escândalo maior não é apenas as pessoas não terem acesso à habitação, o escândalo maior é que continua a haver 700 mil casas vazias em Portugal, sendo que só em Lisboa há mais de 40 mil. Isto é que é um tema que tem que ser bem trabalhado, para que estejamos capazes de resolver de vez este problema.
Com o reforço das políticas públicas de acesso à habitação?
É preciso políticas públicas de acesso à habitação, mas isso só não basta. Tem que se responsabilizar o resto da sociedade para se mobilizar os recursos necessários. Não faz sentido que um recurso tão importante não seja mobilizado para cumprir o papel para o qual ele existe. A habitação existe para ser habitada. É um escândalo social haver tantas casas vazias, pelo que é urgente não só compreender o problema, mas também passar-se a atuar em conformidade. Não basta agravar o IMI e achar que isso resolve tudo. Eu não quero expropriar nada a ninguém, longe de mim, mas temos que compreender que a habitação tem uma função social que tem que ser cumprida. É urgente passar esta mensagem: a habitação tem uma função social, e garantir que ela é compreendida. É um bem sobretudo privado, com toda a certeza, mas tem uma função social, tem que estar a uso, se não está tem que haver outras maneiras de resolver isto. Nem que fosse uma pequena percentagem destas casas todas que estão vazias, já seria suficiente para dar uma resposta enorme às carências que existem. Têm que ser encontradas soluções equilibradas evidentemente, com algum empenho público e privado, sem achar que um ou o outro vão resolver tudo, não vão. Vai ter que ser uma solução mista, com várias prioridades, e dentro dessa solução mista sermos capazes de ser criativos, inventivos e capazes de dar as respostas que se exigem no século XXI.
Quais os principais obstáculos que encontrou nas diferentes frentes em que esteve envolvida?
Não devemos encarar os obstáculos como uma barreira, mas como \um desafio e olhar para eles sobretudo a pensar na forma de os ultrapassar. Uma das coisas onde acho que, sobretudo em Portugal, precisamos de uma mudança, são os hábitos de administração, quer das entidades públicas quer das privadas, mas sobretudo das públicas, onde a cultura administrativa é ainda muito arcaica, muito controleira, desconfiada e onde é muito difícil trabalhar com as dificuldades sistemáticas e quotidianas que se colocam. Isso foi uma realidade em todas as instituições onde trabalhei. Na Ordem dos Arquitectos, por ser uma organização relativamente mais pequena, foi possível ultrapassar isso entre nós, mas nas máquinas grandes, como a CML ou os Ministérios, vamos deparar-nos com as dificuldades mais inusitadas, um pesadelo burocrático que não se entende e que não lembra a ninguém, mas que acontece e torna tudo excessivamente pesado e moroso. As leis estão lá, está tudo previsto, mas depois não se faz porque o sistema informático não funciona ou por outra razão qualquer. No caso da prática da arquitectura também é muito relevante. Para os arquitetos que querem ver os seus projetos aprovados nas Câmaras, é tudo muito difícil, lutam com dificuldades enormes provocadas por um sistema opaco, pouco transparente e com legislação que ora está mal feita ora não é muito difícil de colocar em prática. Falta uma cultura mais saxónica, mais prática. Foram muitos séculos de inquisição e mais tarde de ditadura que criou um hábito de acharmos que a culpa é do sistema ou da lei, criou uma culta de obediência e de medo da iniciativa que importa abandonar.
No meu tempo como presidente da OA o grande desafio era fazer frente à pressão neoliberal que vinha da Europa, onde esse neoliberalismo era dominante, para acabar com o poder das Ordens Profissionais e dos Organismos Públicos, posto que queriam liberalizar todas as profissões, sem a devida atenção à dimensão pública do nosso trabalho, que exige naturalmente a devida regulação. A palavra de ordem era “desregular, desregular, desregular”, retirando poder associativo, sindical e regulador de quem defende o exercício da profissão com qualidade e deontologia.
Como olha para o atual momento da arquitectura, sobretudo num contexto pós-pandémico e debaixo dos efeitos de um conflito militar em território europeu?
Neste momento a necessidade de olhar para um arquiteto como um resolvedor de problemas é mais importante que nunca. Um arquiteto não é apenas uma pessoa que faz um embrulho para vender um produto, um arquiteto tem que ter cabeça para resolver problemas quer a nível espacial quer a nível dos vários sistemas que se interligam na organização da cidade. Nós sentimos hoje, com tudo o que está a acontecer, que vivemos um período de grande mudança, a nível europeu e mundial, fruto da guerra, mas não só, onde há uma mudança geoestratégica em curso. Não sabemos o que vai acontecer, mas sabemos, de ciência certa, que vai ser necessária a intervenção de arquitetos, desde logo na reconstrução física do que está a ser destruído, mas também ao nível da reflexão sobre a maneira como vivemos na cidade e no campo, como se faz as famosas transições climáticas e digitais, que significa mexer com o modo de vida das pessoas, mexer nos espaços que as pessoas habitam, e na forma como os habitam, como circulam, como vivem. Isso começa nas casas e na configuração dos espaços, mas vai até à organização da cidade. Isto é mesmo para arquitetos, posto que são eles que são treinados, no ensino que têm, para serem criativos na resolução de problemas. É certo que muitas vezes não têm os dados todos para resolver, portanto têm que inventar, têm que descobrir, olhar para o todo e encontrar soluções. É isso que deve estar na base do raciocínio dos arquitetos, esse pensamento lateral, criativo e que faz tanta falta faz para resolver os desafios que temos pela frente. E não bastam os arquitetos para essa reflexão, é preciso que todas as áreas desenvolvam essa capacidade, se articulem, caso contrário não estaremos capazes de compreender e transformar o mundo.
O que diria às novas gerações de arquitetos que estão agora a iniciar a sua atividade?
Se calhar eles é que têm que me dizer como é que devemos olhar para o mundo. Há coisas que já não estou em condições de saber. Aqui há tempos fiz um desafio com jovens para resolver um problema e terminei citando os feitos de três pessoas. O senhor Einstein, que descobriu a Teoria da Relatividade com 26 anos, o senhor Heisenberg, que descobriu o Princípio da Incerteza também com 26 anos, e o senhor Gödel, um matemático, que formulou os Teoremas da Incompletude com 25 anos. Ora, eu aos 74 já não vou descobrir nada, para mim isso é muito evidente, até porque não sou nenhum génio. É quando se é jovem que se descobrem coisas novas, diferentes, portanto o que lhes posso dizer é que não tenham medo de fazer coisas diferentes, porque elas são particularmente necessárias em tempos como estes que vivemos.
Entrevista conduzida pelo Gabinete de Comunicação da Ordem dos Arquitectos