
Tratar dos edifícios para cuidar das pessoas | Publicado por Filipa Cardoso
Frio, humidade, falta de luz natural ou exposição ao ruído exterior são algumas das fragilidades que afectam as casas da maioria dos portugueses. A reabilitação energética pode ser a receita para ter mais conforto e bem-estar na habitação, ao mesmo tempo que se reforça a sustentabilidade de toda a cidade.
Acordar, tomar um duche rápido, vestir uma roupa confortável, tomar o pequeno-almoço e começar o dia de trabalho no escritório improvisado – montado temporariamente na sala, no quarto ou, para alguns sortudos, numa divisão destinada ao efeito. Para mais de um milhão de pessoas que se encontravam em teletrabalho em Portugal durante o segundo trimestre do ano passado, esta foi – mais coisa, menos coisa – uma rotina diária nesses meses difíceis. Para a esmagadora maioria (91,2%), o motivo é bem conhecido: a pandemia de Covid-19. E não foi apenas o trabalho que foi afectado, já que o confinamento, as medidas restritivas e o receio de contágio limitaram as actividades sociais e de lazer. Como resultado, passámos muito mais tempo em casa e, querendo ou não, começámos a reparar nalgumas coisas que, até aqui, pareciam “toleráveis” – não há conforto térmico, nem luz natural suficiente, o barulho que vem da rua é insuportável, o ar fica rapidamente saturado, faz falta uma varanda ou um pátio (por mais pequeno que seja!), há humidade ou bolor na parede, o espaço não é funcional, etc.
Este período foi uma dor de cabeça para alguns. Com o inimigo “à solta”, a segurança, a saúde e o bem-estar passaram a estar na ordem do dia e foi nas nossas habitações que os encontrámos. No entanto, estes portos de abrigo não parecem estar preparados para responder a necessidades que não são novas. Ao evidenciar estas preocupações, a pandemia obrigou-nos a olhar para o desconforto das nossas casas, trazendo ao de cima uma oportunidade que tem estado sempre lá: cuidar das nossas casas é cuidar de nós, mas é também melhorar a sustentabilidade das cidades.
Diagnóstico ao edificado
“As nossas casas já não estavam preparadas para o modo de vida antes desta situação pandémica que vivemos, e, portanto, passando mais tempo no interior, esse facto tornou-se mais evidente”, afirmam João Gavião e João Marcelino, da Associação Passivhaus Portugal (PHPT), cuja missão é promover a adopção de uma norma para a construção de edifícios de elevado desempenho energético com base em soluções passivas.
Olhar para os números ajuda-nos a compreender o que está em causa, começando pela saúde e conforto: de acordo com o Healthy Homes Barometer 2019, um em cada seis europeus vive numa casa com más condições para a saúde, isto é, cerca de 80 milhões de pessoas, das quais 26 milhões são crianças com menos de 15 anos. No panorama europeu, Portugal é o pior país deste ranking, com 51% das suas crianças nesta situação.
Mas o que significa uma casa “pouco saudável”? Trata-se de edifícios com problemas estruturais ou ambientais que afectam o ambiente interior. Entre as deficiências destas casas doentes, estão algumas daquelas que os portugueses identificaram nas suas habitações nestes meses, tais como mofo, humidade, falta de iluminação natural, frio ou excesso de ruído, e que tornam os ocupantes mais vulneráveis a uma série de doenças. A situação nacional ainda se agrava mais: no início de 2018, um levantamento feito pelo Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana dava conta de que mais de 25 mil famílias portuguesas estavam em situação habitacional claramente insatisfatória, existindo 31 526 fogos sem as condições mínimas de habitabilidade. A maior parte destas carências habitacionais (74%) estava concentrada nas duas áreas metropolitanas e resolver a situação exigia, nada mais, nada menos do que 1700 milhões de euros, de acordo com o estudo.
Veja-se, agora, a componente energética: segundo a Comissão Europeia (CE), os edifícios são responsáveis por 40% do uso de energia e por 36% das emissões de gases com efeito de estufa na União Europeia (UE). Do parque edificado europeu, cerca de 35% foi construído há mais de 50 anos e perto de 75% é ineficiente do ponto de vista energético. Em Portugal, o diagnóstico feito na versão (ainda) provisória da Estratégia de Longo Prazo para a Renovação dos Edifícios indica que dois terços dos alojamentos existentes em Portugal (cerca de 3,8 milhões) são anteriores a 1990 e, por isso, não cumprem requisitos de eficiência energética. O documento oficial indica ainda que, “actualmente, o parque de edifícios existentes proporciona desconforto térmico em mais de 95% das horas do ano”. Por sua vez, os certificados energéticos emitidos desde 2013, ano em que se tornaram obrigatórios para imóveis no mercado, ilustram a mesma tendência, com a maioria a apresentar classe C ou inferior, mostram dados do Observatório de Energia da ADENE – Agência para a Energia.
A saúde precária e o desempenho ineficiente dos edifícios são problemas anteriores ao surgimento do novo coronavírus. No caso da energia, a preocupação com o desempenho energético dos edifícios entrou na agenda política comunitária em 2002, com a aprovação de uma directiva para o efeito. Desde então, os requisitos para a nova construção têm sido progressivamente apertados nos vários países da UE, o que tornou os edifícios construídos nos últimos anos significativamente mais eficientes. Ainda assim, o potencial dos edifícios existentes manteve-se adormecido e, só a partir de 2010, com as revisões da mesma lei comunitária e a crise económica, se começou a olhar a reabilitação com mais interesse.
O efeito “pandemia”
Ao evidenciar os problemas das nossas casas, a pandemia tornou a sua resolução ainda mais urgente, alterando também a forma como olhamos os espaços interiores. “A percepção do espaço, da sua qualidade e do seu valor está a alterar-se”, considera a PHPT. “Passando mais tempo no interior, as necessidades de climatização aumentaram e, devido à baixa qualidade das casas, os consumos aumentaram, levando as pessoas a perceber o quanto a eficiência energética e o isolamento térmico não são apenas expressões da moda, mas como afectam carteira no final do mês. Para além disso, nunca foi dada tanta importância às janelas e varandas, já que, para além de garantirem a iluminação natural, eram o único meio de contacto físico com o exterior. A pandemia ainda não terminou e muitas pessoas continuam, e continuarão, em teletrabalho, o que implica uma adaptação funcional das suas casas com a necessidade de mais espaço”.
As novas necessidades fizeram-se sentir na actividade do sector da construção, que, apesar da suspensão de alguns projectos, foi um dos que não parou durante o confinamento. “As pessoas passavam muito tempo em casa e surgiram muitos pedidos de remodelação, muita procura nas zonas periféricas por terrenos e moradias com espaço aberto, jardim ou varandas, onde as pessoas possam estar”, relata Nuno Garcia, CEO da empresa do sector GesConsult.
Os problemas não são exclusivos das habitações e “a qualidade dos edifícios que usamos, escritórios, escolas e outros, é, em geral, má”, afirma a PHPT. Mais uma vez, o problema não está na nova construção já que as regras em vigor “são feitas no caminho da eficiência energética”, garante, por seu lado, Nuno Garcia. No entanto, com a pandemia, minimizar o risco da propagação do vírus nestes espaços tornou-se essencial. “Ter uma ventilação adequada foi uma preocupação evidente, mas não só; tudo o que minimize a propagação do vírus começou a ter impacto, desde sistemas contactless para evitar tocar em superfícies e toda a gestão técnica, à adaptação dos espaços, de modo a permitir as condições de segurança e os novos níveis de ocupação, assim como o aproveitamento de qualquer m2 ao ar livre”, enumera. Para este engenheiro, não há dúvidas de que estes são temas que vêm para ficar na forma como se vai projectar daqui para a frente.
E se a engenharia não ficará a mesma depois da Covid-19, o mesmo deverá acontecer com a arquitectura, como, aliás, sempre aconteceu no passado, lembram os arquitectos da PHPT. O que muda? “Desde logo, do ponto de vista do desenho os edifícios, nomeadamente os públicos, [estes] poderão vir a ter corredores unidireccionais, entradas e saídas independentes, a relação interior/exterior será valorizada, a digitalização crescerá no sentido de evitar o contacto físico com portas, elevadores, janelas, estores… Talvez seja reforçada a tendência para a utilização de materiais mais inócuos para a saúde das pessoas e mais sustentáveis. Deveremos também ter edifícios mais flexíveis na sua utilização de modo a aumentar a sua adaptabilidade a novas exigências e a sua resiliência”.
EFICIÊNCIA ENERGÉTICA
A eficiência energética nos edifícios faz parte das prioridades de investimento previstas no orçamento de longo prazo da UE 2021-2027, que conta com mais de um bilião de euros, aos quais se junta o instrumento de recuperação económica NextGenerationEU.
“Chegou o momento de agir”, diz Bruxelas
Para que a Europa consiga cumprir as suas metas e alcançar a neutralidade carbónica em 2050, a renovação energética dos edifícios é uma prioridade. Bruxelas estima que a reabilitação energética dos edifícios europeus possa reduzir em 5-6% o consumo de energia e as emissões deste sector, ao mesmo tempo, que sara muitas das deficiências apontadas, melhorando o conforto térmico e acústico e reforçando a qualidade do ambiente interior, com claros benefícios para as pessoas e para as cidades. Investir na eficiência energética dos edifícios vai também estimular a economia, ao dinamizar o sector da construção, que representa 9% do PIB europeu e emprega directamente 18 milhões de pessoas.
Porém, actualmente, a taxa anual de reabilitação energética de edifícios na UE é de 1% – um número que a CE está a tentar duplicar, tendo lançado para isso, em Outubro, a iniciativa Renovation Wave, no âmbito do Pacto Ecológico Europeu. “Em resultado de uma única intervenção, os edifícios podem tornar-se mais salubres, mais ecológicos, interligados com a zona envolvente, mais acessíveis e resilientes a fenómenos naturais extremos, bem como ficar equipados com pontos de carregamento para a electromobilidade e com estacionamento de bicicletas. Os edifícios inteligentes podem fornecer, em conformidade com as normas de privacidade, dados essenciais para efeitos de planeamento urbano e serviços municipais. As renovações profundas podem reduzir a pressão imobiliária sobre os espaços verdes, ajudando a preservar a natureza, a biodiversidade e as terras agrícolas férteis”, lê-se no documento que lança a iniciativa.
Juntando a isto a resposta necessária à pandemia e aos seus impactos sociais e económicos, está criada a oportunidade para finalmente intervir no parque edificado. “Num momento em que a Europa procura ultrapassar a crise da Covid-19, a renovação oferece uma oportunidade única para repensar, redesenhar e modernizar os nossos edifícios, a fim de os preparar para uma sociedade mais ecológica e digital e apoiar a recuperação económica”, reconhece a CE.
A partir de Bruxelas, as regras para a eficiência energética vão continuar a apertar, no sentido de alcançar a neutralidade carbónica nos edifícios e de interligá-los com outros sistemas, como a mobilidade. O tema faz parte das prioridades de investimento previstas no orçamento de longo prazo da UE 2021-2027, que conta com mais de um bilião de euros, aos quais se junta o instrumento de recuperação económica NextGenerationEU. Dos 750 mil milhões de euros de que este último dispõe, Bruxelas já fez saber que 37% será para implementar o Pacto Ecológico Europeu, do qual faz parte a Renovation Wave.
Em Portugal, começam a aparecer alguns sinais neste sentido. Sendo o combate à pobreza energética uma das prioridades do actual Executivo, em Setembro, foi lançado o Programa de Apoio a Edifícios mais Sustentáveis, cujo objectivo é financiar a implementação de medidas de eficiência energética e hídrica em edifícios residenciais, dispondo de uma dotação orçamental de 4,5 milhões de euros oriundos do Fundo Ambiental, entretanto esgotados. Por sua vez, com 10 milhões de euros, o Programa Bairros Saudáveis tem como missão apoiar a melhoria das condições de saúde, bem-estar e qualidade de vida em territórios vulneráveis. Para além disso, o Plano de Recuperação e Resiliência nacional prevê um investimento de 620 milhões de euros para a eficiência energética nos edifícios, sendo que a habitação vai receber cerca de 300 milhões de euros do Orçamento de Estado para 2021.
A habilidade para concretizar a oportunidade financeira vai ser decisiva para alterar o estado dos nossos edifícios, cabendo agora aos decisores políticos criar os mecanismos de financiamento capazes de executar os fundos que aí vêm, mas também criar quadros regulatórios que promovam as boas práticas, como a criação de comunidades de energia ou bairros de energia positiva, e incentivem verdadeiramente à melhoria da eficiência energética nos edifícios.
“O que tem de haver é uma intenção política forte e ambiciosa que veja a situação actual como uma oportunidade para melhorar as cidades e em simultâneo incentivar o sector da construção”, refere a associação PHPT. Nesta missão, cada agente tem um papel a desempenhar e Portugal “está preparado” para isso, garante, já que existem, no país, “materiais de construção, equipamentos, tecnologias, profissionais e processos desenvolvidos para dar resposta a essas preocupações”. É preciso também “continuar a desenvolver um esforço por fazer melhor, ou seja, a projectar melhor, reabilitar com um plano definido, construir com mais rigor para que a qualidade do parque edificado vá melhorando”. Por fim, aos cidadãos, cabem os comportamentos e escolhas mais amigas da sua cidade.
CASAS INTELIGENTES
A pandemia está a acelerar a transição digital, mas, nas nossas casas, dispor de soluções que podem ser controladas através do smartphone e integradas num “verdadeiro ecossistema electrónico” é cada vez mais comum.
A inteligência ao serviço da sustentabilidade
Enquanto trabalhamos ou estudamos em casa, outros elementos para além do ambiente construído contribuem para o nosso conforto, optimizam tarefas e ajudam a combater o isolamento social. “Os equipamentos, electrodomésticos e soluções tecnológicas que temos em casa ganharam uma relevância especial e crucial para o dia-a-dia, tanto no contexto doméstico como no profissional”, defende Hugo Jorge, marketing director da LG Portugal.
A pandemia está a acelerar a transição digital, mas, nas nossas casas, dispor de soluções que podem ser controladas através do smartphone e integradas num “verdadeiro ecossistema electrónico” é cada vez mais comum. Há muito que se fala das “casas inteligentes” e as previsões da era da Internet das Coisas são amplamente conhecidas – cerca de 43 mil milhões de objectos conectados em 2023, estima a Gartner. Muitos deles estarão dentro das nossas casas, desde os pequenos electrodomésticos aos sistemas centralizados de gestão de energia. Estes objectos inteligentes, que se conectam e comunicam entre si, facilitam o dia-a-dia, mas representam um acréscimo no uso de energia nos nossos edifícios, pelo que “optar por equipamentos com elevados níveis de eficiência energética é uma das melhores formas de fazer com que a nossa casa seja mais ecológica”, adianta Hugo Jorge.
A sustentabilidade vai ganhando espaço na mente das pessoas. Segundo um estudo da Unilever, um em cada três consumidores escolhe os produtos que compra tendo a sustentabilidade em mente. No entanto, um outro estudo da Getty Images apurou que, embora haja uma maior preocupação com o planeta, nem sempre esta se traduz em acção e as pessoas tendem a priorizar o bem-estar e sua conveniência.
Este é um cenário que deixa na mão das fabricantes a responsabilidade de criar soluções amigas das pessoas, mas também do ambiente. “O papel da tecnologia para assegurar o conforto da família, mantendo a sustentabilidade do lar, é hoje absolutamente incontornável”, confirma o responsável da LG, que reconhece que “a redução da pegada ambiental e dos custos de energia” fazem cada vez mais parte da procura de soluções por parte dos consumidores. E começam a surgir no mercado algumas originais em jeito chave-na-mão. É o caso do Smart Home Energy Package da marca sul-coreana, que integra os principais sistemas necessários para produzir energia de origem renovável (com painéis fotovoltaicos), armazenar energia e ainda climatizar e aquecer as águas usando uma bomba de calor ar-água. “Do telhado para todas as zonas da casa e todos os equipamentos, incluindo as maiores fontes de consumo energético como os grandes eletrodomésticos da cozinha e até o carro eléctrico, a LG apresenta um conjunto de soluções integradas únicas no mercado, com a fiabilidade e conveniência que nos são reconhecidas”.
Também a Samsung – outra gigante da Coreia do Sul – está a trabalhar na integração de sistemas de energia, nomeadamente para aquecimento e arrefecimento renovável (bombas de calor), com dispositivos inteligentes da marca, tais como electrodomésticos e outros dispositivos IoT. A solução deverá ser testada muito em breve num empreendimento de 6000 casas no Reino Unido.
Este artigo foi originalmente publicado na edição nº 29 da Smart Cities – Outubro/Novembro/Dezembro 2020, aqui com as devidas adaptações.