
Num momento em que a nossa economia atravessa uma fase de maior incerteza, a Vimaplás teve o privilégio de conversar com a Eng.ª Rosário Veiga, Chefe do Núcleo de Revestimentos e Isolamentos do LNEC.
Nesta conversa abordámos o impacto do atual surto de Covid-19, o papel do LNEC, a importância dos Documentos de Homologação e os principais desafios do sector da construção, entre outros temas.
Veja aqui a entrevista na íntegra e fique a par da opinião da prestigiada Eng.ª Rosário Veiga. Uma opinião que conta.
👉 A economia mundial atravessa neste momento uma fase delicada, em virtude do surto epidemiológico de Covid-19. Como analisa o impacto deste vírus no setor da construção, em Portugal? Temos razões para ser optimistas?
🔶 RV
– É claro que, como em todos os outros setores, houve um abrandamento no setor da construção, porque existe uma grande incerteza sobre a evolução da economia e da capacidade de compra das pessoas. Mas penso que é um dos setores que irão recuperar mais rapidamente. Na verdade, as pessoas sentiram muito a importância de ter boas condições em casa e também nos locais de trabalho: a boa construção, o conforto, a salubridade dos espaços, são aspetos cuja relevância ficou muito evidente, quando deixámos de poder sair e viajar livremente. Penso que a qualidade será mais valorizada. Por outro lado, a perceção exterior de Portugal como destino seguro e lugar tranquilo para viver parece não ter sido afetada, por isso estou confiante que a procura voltará a crescer.
No que se refere ao trabalho do LNEC, nas áreas dos Edifícios e dos Materiais, as consultas mantiveram-se elevadas, o abrandamento que sentimos foi ligeiro e a minha perceção é que o nível de solicitações provenientes de empresas do setor já voltou ao normal.
👉 É impossível falar de construção em Portugal e não falar do LNEC. Pode-nos explicar um pouco o papel do LNEC, em particular do Núcleo de Revestimentos e Isolamentos que dirige? Em que medida é que as investigações que a sua equipa realiza se refletem na qualidade de construção dos nossos edifícios?
🔶 RV – O trabalho do LNEC é muito diversificado. Uma das áreas em que trabalhamos muito em ligação com as empresas é a da Qualidade da construção. No meu Núcleo esta área é bastante importante e tem uma procura considerável por parte das empresas. Por exemplo, realizamos estudos sobre produtos e sistemas da construção, com o objetivo de verificar a sua adequabilidade para cada tipo de utilização. Desses estudos resultam, por exemplo, Documentos de Homologação, Documentos de Aplicação e Aprovações Técnicas Europeias, que ficam depois disponíveis no sítio do LNEC (www.lnec.pt), onde podem ser descarregados gratuitamente por qualquer pessoa.
Fazemos também muitos Pareceres, sobre anomalias, nomeadamente identificação das causas e recomendações para reparação. Há também trabalho de consultoria e acompanhamento em obras consideradas especiais, a pedido das empresas ou do estado.
Mas a montante destes trabalhos realizados diretamente para as empresas, está um trabalho talvez menos visível para a comunidade técnica nacional, de investigação sobre características e comportamento de materiais e produtos e sobre estabelecimento de requisitos, sobre novas soluções e procedimentos para resolver problemas existentes. São estes estudos de investigação, realizados com parceiros nacionais e internacionais, que depois permitem dar resposta às solicitações.
Para além da Qualidade, o trabalho do meu Núcleo incide também em outras grandes áreas, tais como a Sustentabilidade da construção, a Conservação de edifícios com valor cultural e a Eficiência energética.
No entanto, o reflexo desta atividade na qualidade real dos edifícios, depende depois muito da atitude das empresas e do seu envolvimento no processo. Parte das empresas procuram esses instrumentos e esse conhecimento, outras nem tanto. A construção implica uma rede de atividades, com várias empresas envolvidas, e se uma delas falha nessa procura de saber, o resultado global pode ser afetado.
👉 O acesso à informação no setor da construção nem sempre é o mais desejável. Quais são, do seu ponto de vista, os principais obstáculos a este acesso? Que conselhos práticos daria às empresas e profissionais do setor que procuram atualizar o seu conhecimento?
🔶 RV
– A evolução das tecnologias da construção, dos produtos e sistemas usados é atualmente muito rápida, exigindo uma formação constante dos técnicos. Por outro lado, têm surgido diversos Cursos, Workshops, Encontros, Congressos, etc. nas várias Instituições de Investigação e de formação do País (LNEC, Universidades, Politécnicos). Essas iniciativas, e a documentação resultante (artigos, comunicações, bibliografia de apoio) permitem um acompanhamento próximo pela comunidade técnica da inovação no setor da construção. No entanto, é claro que a maior parte desses eventos são pagos e esses custos e também o tempo consumido são obstáculos à participação. Seria importante que as empresas percebessem a importância de facultarem e até incentivarem essa participação aos seus funcionários.
Os técnicos podem e devem procurar nos sítios das Instituições de Investigação e Desenvolvimento a informação existente sobre eventos formativos e de divulgação de conhecimento, participando também, quando houver essa possibilidade, apresentando os casos e as soluções que conhecem. Essa interação é muito útil para todos. Podem também, desde logo, procurar, nesses sítios e noutros, documentação e artigos sobre as áreas em que trabalham.
É fundamental fomentar-se a cultura de aprendizagem ao longo da vida e procurar ativamente esse conhecimento.
👉 Temos assistido a uma crescente vulgarização de documentos com o objetivo de atestar a qualidade dos materiais de construção, muitas vezes devido à pressão do preço. Neste contexto, qual a importância dos Documentos de Homologação do LNEC e o que os diferencia de outros documentos?
🔶 RV – Os Documentos de Homologação do LNEC têm a especificidade de, além de atestarem a qualidade do produto ou sistema de construção, garantirem também a sua adequabilidade a um determinado uso. Isso implica verificar, por um lado, as características do produto ou sistema e confirmar o cumprimento de requisitos gerais, mas também o seu comportamento em condições que simulam as situações reais para o uso específico. Por exemplo, um cimento-cola pode ser adequado para colar ladrilhos cerâmicos de revestimentos interiores de paredes e não ser adequado para revestimentos exteriores, ou para revestimentos de piso, ou para placas de pedra.
Adicionalmente, é definido o campo de aplicação do produto ou sistema e são descritas as condições de aplicação. Por exemplo, um sistema pode ser aplicável só a partir de 2 m de altura em relação à base da parede, por ter uma resistência ao impacto baixa, ou pode ser aplicável só até 28 m de altura devido à classificação de reação ao fogo.
A avaliação feita implica uma visita à fábrica para analisar as condições de fabrico e o controlo da qualidade, um estudo laboratorial para determinar as características e o comportamento e visitas a obras para verificar as condições reais de aplicação e o comportamento em obra. É, assim, um estudo bastante completo.
Por exemplo se compararmos com a Marcação CE, vemos que esta Marcação tem uma filosofia bastante diferente e não nos diz se o produto é adequado, mas apenas que apresenta determinadas características e cumpre uma determinada Norma Europeia., que por vezes nem é especificamente dirigida ao uso pretendido. Depois compete aos projetistas e construtores decidirem se o produto com essas características é adequado ao que pretendem.
Os Documentos de Homologação são disponibilizados gratuitamente a todos que queiram descarregá-los do sítio do LNEC.
👉 Olhando agora um pouco para o futuro, o que diria que vão ser os principais desafios para o setor da construção nos próximos anos? Acha que a transformação digital vai ser de facto tão relevante como noutros sectores de atividade?
🔶 RV
– Considero que a Sustentabilidade vai ser e, na verdade, já está a ser, um dos maiores desafios. O setor da construção é um dos que tem maior impacto no ambiente, pelos resíduos que produz, a energia que gasta e o CO2 que emite para a atmosfera na produção dos produtos empregues. Reduzir todos estes impactos é na verdade um grande desafio e tem sido objeto de vários projetos de investigação. Eu própria estou envolvida em projetos relacionados com a reutilização de resíduos de construção e demolição e com a redução das emissões de CO2 resultantes da produção de cimento. Lembremo-nos que, de acordo com as leis Europeias, os Países e as empresas terão que pagar cada vez mais pelo CO2 que emitem, pelo que a produção de alguns componentes da construção podem tornar-se incomportáveis, se não houver alterações significativas nos processos de fabrico.
A revolução digital parece-me também um grande desafio, já está a ocorrer, mas ainda a um nível mais reduzido que noutras indústrias devido à grande componente de trabalho físico e presencial no setor. No entanto, creio que é inevitável que haja uma aceleração do processo nos próximos anos, nas áreas em que ele é viável: projeto, planeamento da construção, pré-fabricação, processos de decisão, etc. É essencial a digitalização para reduzir custos e prazos e automatizar processos e facilitará toda uma racionalização do setor. A pandemia que estamos a viver acelerou a transformação digital a nível global, mudando hábitos e perceções e certamente também haverá reflexo no caso da construção, embora não seja ainda muito percetível.
Lisboa, junho de 2020