
O simplex dos licenciamentos urbanísticos – o Decreto-Lei n.º 10/2024 – tem feito correr muita tinta. A grande maioria das 26 medidas do diploma entram em vigor dia 4 de março, mas algumas já têm efeitos desde 1 de janeiro de 2024, como por exemplo o facto de deixar de ser obrigatório apresentar, por defeito, a licença de utilização quando se compra uma casa. Em entrevista ao idealista/news, Avelino Oliveira, presidente da Ordem dos Arquitetos (OA), considera que há pontos positivos e negativos e deixa em aberto a possibilidade do próximo Governo saído das eleições no dia 10 de março vir a alterar algumas das medidas contempladas no documento aprovado pelo Executivo socialista de António Costa.
“Aquilo que sabemos é que estará prevista uma comissão de acompanhamento deste simplex. E é bom que envolvam a OA, a Ordem dos Engenheiros, as associações de promotores e todos os stakeholders para fazer este acompanhamento, porque tenho a certeza que têm de ser introduzidas alterações, não há dúvidas”, desabafa.
Segundo o arquiteto, que foi recentemente eleito presidente da OA, tendo substituído no cargo Gonçalo Byrne, “é bom que o próximo Governo tenha muito cuidado e dê muita atenção” à comissão de acompanhamento.
Uma das novidades do programa Mais Habitação está relacionada com o simplex do licenciamento urbanístico, que já entrou em vigor e tem feito correr muta tinta. Vários players do setor consideram que é mais um “complex”. Qual é a visão da OA sobre o tema?
Este novo simplex urbanístico tem de ser dividido em duas partes. Os pontos positivos e os negativos. Os positivos são os que realmente representam o simplex e os negativos são o “complex”. Infelizmente, estivemos desde o verão sem conhecer qual era a proposta de lei em concreto. Ela teve vários contributos, mas, de certa maneira, esteve fechada e encerrada à participação pública.
“Algumas das medidas [do simplex] para lá de boas são ótimas, outras são extremamente perigosas e complexas”
Aquilo que vimos numa manhã de janeiro é que “saiu” um simplex que tem coisas positivas, como a plataforma de procedimentos únicos, a definição de um código da construção, a simplificação de alguma burocracia que está infernal. Algumas das medidas para lá de boas são ótimas, outras são extremamente perigosas e complexas e, de certa maneira, refletem-se na responsabilização dos técnicos, mas pior que isso, podem vir a ter consequências negativas na população. Isto porque algumas coisas que ali estão colocadas, por aquilo que já sabemos, podem vir ainda a onerar, a criar problemas, não só à habitação como a outra edificação, como ainda a onerar os valores daquilo que é o mercado. O mercado não está a reagir muito bem a este simplex. Às coisas boas sim, às coisas negativas está bastante preocupado. As entidades licenciadoras estão de certa maneira num impasse, nem sabem como responder, e nós temos muitos técnicos arquitetos nas entidades licenciadoras. Estamos verdadeiramente preocupados.
Portugal vai a votos em março e haverá um novo Governo. Acredita que pode ser dado um passo atrás relativamente a algumas das medidas do simplex?
Aquilo que sabemos é que estará prevista uma comissão de acompanhamento deste simplex. E é bom que envolvam a OA, a Ordem dos Engenheiros, as associações de promotores e todos os stakeholders para fazer este acompanhamento, porque tenho a certeza que têm de ser introduzidas alterações, não há dúvidas. São questões demasiado perigosas e que enfermam de problemas, tendo consequências no interesse público. Portanto, nós já estamos preparados para a comissão de acompanhamento. E é bom que o próximo Governo tenha muito cuidado e dê muita atenção a essa comissão e que também esteja disponível para dizer: “Isto não está a correr tão bem como previsto, vamos ajustá-lo”. Ou seja, ter flexibilidade, não ter receio de dar o braço a torcer quando as coisas estão manifestamente mal construídas, mantendo as que estão bem construídas, porque há coisas que nós, OA, dizemos, por favor, não as alterem.
“Aquilo que sabemos é que estará prevista uma comissão de acompanhamento deste simplex. E é bom que envolvam a OA, a Ordem dos Engenheiros, as associações de promotores e todos os stakeholders para fazer este acompanhamento, porque tenho a certeza que têm de ser introduzidas alterações. (…) Nós já estamos preparados para a comissão. E é bom que o próximo Governo tenha muito cuidado e dê muita atenção a essa comissão”
É curioso que, nos pontos positivos, a OA está praticamente em todos os grupos de trabalho: a plataforma única, a AO é um dos motores dentro desse grupo de trabalho; o código da construção, a relação com o IMPIC é excecional e o instituto parece estar a trabalhar muito bem, estando a OA envolvida; as propostas de simplificação administrativas, muitas estavam propostas quer pela OA quer pela Ordem dos Engenheiros. Nessas não podemos tocar. Agora as outras, que têm consequências na banca, nos seguros, nos promotores, nos valores… Nessas, pela irresponsabilização que está feita sobre os técnicos e das entidades licenciadoras, não tenho dúvidas de que vai ter de haver alterações.
Os atrasos nos processos de licenciamento há muito que são um problema identificado pelos ‘players’ do setor imobiliário, nomeadamente em Lisboa, atrasando a chegada de novas casas ao mercado. Estes atrasos ocorrem em todo o país ou é uma questão mais centralizada, na capital?
Os atrasos nos licenciamentos são transversais a todo o país, mas o caso de Lisboa é paradigmático. Quanto maiores são os municípios, maiores também são os problemas. Mas há uma coisa curiosa. É que os atrasos que há nos licenciamentos são provocados, nomeadamente, por um ou dois diplomas que agora são alterados. Mas são provocados porque não se cumpre o que está disposto nos diplomas. Se no futuro também não se cumprir, os atrasos não se resolvem. Portanto, a questão dos atrasos é a operacionalização e a capacidade com que a lei esteja adequada ao mercado, às pessoas, aos projetistas, aos requerentes, aos promotores, ao utente final, às pessoas que querem habitar, a todos os que estão envolvidos no processo. A legislação é feita para consolidar aquilo que é o melhor para a sociedade e esse é que é o problema. Portanto, tenho algumas dúvidas de que não se vá continuar a incumprir a mesma legislação que agora foi alterada. Tenho muitas dificuldades em antever que o cenário seja tão positivo e é essa a nossa grande preocupação.
Quando os promotores se queixam que estão dois, três, quatro, cinco anos à espera de um licenciamento, isso acontece porque alguém não está a cumprir prazos e está a criar extremas dificuldades. Altera-se o procedimento, altera-se a legislação, mas se se continuar a incumprir isso não resolve. Mas pior que isso é o grau de risco. Se aumentar muito o grau de risco daquilo que são as operações urbanísticas… Porque esta simplificação corre esse risco, simplifica-se tanto que o risco é muito maior, e é maior para projetistas e para as pessoas. E aí os bancos não arriscam, por isso vão subir as taxas de juro e os custos inerentes a isso. E aquele que é o nosso objetivo, que é baixar o preço da habitação, vai ser onerado, porque o risco é maior.
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