De que falamos quando falamos de urgência?

Categorias: Arquitetura

Artigo de opinião de Gonçalo Byrne  – De que falamos quando falamos de urgência?

Nos últimos dois anos a urgência impôs-se como justificação para a ação política. Aqui chegados, questionamos que urgência é esta que não impôs efetivas soluções. Falaremos de urgência – aquela que determina a necessidade imediata de fazer acontecer –, ou de mera pressa – própria daquilo que é precipitado? E podemos – o Estado – dar-nos ao luxo de invocar pressa quando o que está em causa é a qualidade daquilo que construímos e, portanto, a qualidade de vida dos cidadãos?

O PRR é parte de um pacote extraordinário de financiamento dos países da zona euro que garante acesso a instrumentos de recuperação económica e social. Chamam-lhe a “supervitamina” para uma transformação resiliente e justa. Sabemos que o seu período de execução – até 2026 – exige das nossas instituições públicas uma resposta que anos de desinvestimento público dificilmente permitirão. Mas onde ficarão a capacidade de recuperar da adversidade e a justeza quando o Estado se demitir de liderar esse processo?

Em 2020, quando a urgência já era o pretexto para operar mais uma alteração ao código de contratação pública, propunha-se uma modificação ao regime de conceção-construção – o modelo que permite que, num único procedimento, seja contratado ao construtor não apenas a empreitada, mas também o projeto – um regime que é usado (e bem) pelo Estado em casos excecionais, fundamentados e, sobretudo, em situações de elevada complexidade técnica da construção. Propunha-se que fosse aplicável em matérias como a promoção de habitação pública ou de custos controlados, programa que não se funda na obrigação de uma resposta assente na tecnicidade de quem constrói e na especial complexidade técnica do que é construído, mas que se funda num direito básico pelo acesso a uma habitação e um habitat de qualidade, qualidade que o Estado se propunha desconhecer aquando da contratação.

O objetivo, amplamente criticado por diversas entidades, era, assim, o de tornar a exceção regra. E como? Transferindo para o empreiteiro toda a responsabilidade: pela escolha dos projetistas, pela escolha do projeto que serve o interesse público e pela construção. E, sabemo-lo bem, não é ao empreiteiro que cabe defender o interesse público por uma construção de qualidade. O Tribunal de Contas alertava para o risco de corrupção, para a alteração do mercado da obra pública, que passava da alçada dos projetistas para a dos empreiteiros, e para a limitação da concorrência, com o privilégio a cair do lado das grandes construtoras. Este risco era também sublinhado pela própria Associação de Empresas de Construção e Obras Públicas e Serviços.

Convicta de que a resposta à urgência não poderia, em caso algum, alterar o mercado de projeto de obra pública, transpondo-o para os empreiteiros – poucos, pois serão também poucas as empresas de construção que, em Portugal, terão a capacidade para dar resposta ao volume de obra que se pretende executar – em detrimento dos projetistas – muitos e qualificados – arquitetos e engenheiros, a Ordem dos Arquitectos defendeu que o projeto não é um dispêndio desnecessário, mas sim um investimento elementar na boa aplicação do dinheiro público. Defendeu que o investimento anunciado na habitação deveria obrigar as políticas públicas exigentes de qualidade e metodologias de gestão que se conformassem com a urgência que o País enfrentava. Sublinhou que essa obrigação e exigência excluíam a possibilidade do Estado adjudicar uma obra sem conhecer o projeto.

Os projetistas não desconhecem as vantagens do modelo de conceção-construção com a antecipação da entrada do empreiteiro no processo de elaboração do projeto. Mas conhecem também os resultados que o mesmo tem quando o Estado se demite da sua responsabilidade e o mesmo é empreendido de forma discricionária na obra pública: a falta de qualidade do que é construído.

Dois anos depois, é com redobrada apreensão que encaramos as consequências do diploma que agora se propõe a alterar, uma vez mais, o Código de Contratos Públicos. Introduz um procedimento dito especial face àquilo que é regra, de acesso excecional à modalidade de conceção-construção que verificamos não ser uma exceção, mas antes a possibilidade do Estado, de forma livre, arbitrária, generalizada e definitiva, recorrer à conceção-construção. E qual a razão? A pior.

Possibilitar “a eliminação de dispêndios de tempo e recursos desnecessários, por parte da entidade adjudicante, nos casos em que esta considere que o mercado está em melhor posição de elaborar um projeto de execução de determinada obra, concluindo que tal prerrogativa concorrerá para uma pretendida agilização procedimental”. Dizê-lo é apresentar demissão do exercício de políticas públicas.

A avançar dessa forma, obra feita, que País teremos? Que consequências trará para a nossa paisagem e para a promoção da futura qualidade de vida dos portugueses?
Exigimos, assim, maior prudência.

Veja-se o exemplo de Espanha, que soube reconhecer que defender o projeto é proteger o interesse público por um urbanismo de qualidade, pela defesa e promoção da paisagem, do património edificado, do ambiente, da qualidade de vida de todos nós. Do outro lado da fronteira, a Ley de la Calidad de la Arquitectura é uma das reformas incluídas no Plan de Recuperación, Transformación y Resiliencia, uma lei que reuniu consenso parlamentar praticamente unânime, bem como um amplo apoio social e profissional. Uma lei promovida pelo Ministerio de Transportes, Movilidad y Agenda Urbana e concebida como um instrumento legislativo necessário para assegurar e garantir os objetivos de interesse público que a arquitetura desempenha.
Em Portugal, não soubemos preparar a resposta que se exigia, mas a pressão para executar não pode ser sinónimo de pressa para gastar.

Concentremo-nos na urgência, mas na urgência da construção de qualidade.

Para todos.

Gonçalo Byrne – Presidente da Ordem dos Arquitectos

Artigo publicado no © Público – 07/09/2022

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