Antonio Covas

Geossistemas complexos e economia da 2ª ruralidade

Categorias: Território

No sistema económico dominante em que vivemos, o capitalismo, os conceitos hegemónicos são, como sabemos, o mercado, a produtividade e a competitividade. Para poderem operar com eficácia, eficiência e rentabilidade quanto baste, os operadores necessitam de escala, conhecimento e fatores de produção a bom preço. Quem não cumpre estas condições tarde ou cedo vai parar às margens do sistema. O resultado está à vista de todos. Agressões sucessivas ao ambiente, um desperdício de recursos escandaloso e uma entropia monumental em todo o sistema. E tudo isto feito com muita inteligência racional e, agora, também com muita inteligência artificial. E em todo este processo, onde ficam as outras duas inteligências, a inteligência emocional – a sensibilidade, a moderação, a arte e a cultura – e a inteligência natural – a biodiversidade, a bioeconomia, os serviços de ecossistema, o equilíbrio e as virtudes da paisagem global?

Com efeito, se corrigirmos algumas das nossas prioridades mais egocêntricas e prestarmos mais atenção à arquitetura dos sistemas territoriais e à economia criativa dos sinais distintivos territoriais, vamos encontrar ainda uma surpreendente variedade de unidades de paisagem e mosaicos paisagísticos onde ainda é possível descortinar uma inteligência coletiva territorial remanescente, mesmo em áreas de baixa densidade e nos lugares mais críticos e inspiradores. É o espírito e o génio dos lugares, não obstante a sociedade digital do micro e do nano processamento tender para um máximo de controlo vertical. Para provar o que afirmo, dou, a seguir, alguns exemplos de geossistemas territoriais complexos que, devidamente operacionalizados, podem ser inspiradores e fazer crescer a economia das áreas de baixa densidade do interior do país.

Em primeiro lugar, o geossistema da terra fria transmontana e do Barroso. É um geossistema praticamente completo com os nove vetores anteriormente referidos e que pode associar, ainda, a ocidente, as unidades de paisagem geograficamente contíguas, as Terras de Basto e serras do Marão e Alvão, a ocidente, e o planalto mirandês, a oriente. É património agrícola mundial da FAO e possui inúmeras denominações DOP e IGP. Além disso, possui atores-rede fundamentais para a representar como são o Instituto Politécnico de Bragança, a CIM das Terras de Trás-os-Montes e as cooperativas de Boticas (CAPOLIB) e do Barroso.

Em segundo lugar, o geossistema da terra quente transmontana e da Vilariça. É um geossistema bastante completo, uma região de transição entre o Alto-Trás-os-Montes (a Terra Fria e o Alto Tâmega) e o Douro, marcada pelos vales dos rios Sabor e Tua que correm encaixados para o Douro, e por fossas tectónicas, de Mirandela e da Vilariça, sendo os acidentes de relevo de maior destaque as Serras de Bornes e dos Passos. Pelas suas caraterísticas climáticas, com verões muito quentes e secos e invernos rigorosos, apresenta um coberto vegetal e culturas de tipo mediterrânico. A agricultura praticada é dominantemente familiar e de minifúndio (castanha, hortícolas, azeitona, uva, cereja, maçã, amêndoa) relevando-se, no entanto, algumas explorações de natureza empresarial, nomeadamente na área da olivicultura, fruticultura e viticultura. Apresenta uma variedade paisagística de rara beleza, com destaque para os vales do Sabor, do Tua e da Albufeira do Azibo e conta com um conjunto de áreas classificadas pertencentes à rede Nacional de Áreas Protegidas, como a Albufeira do Azibo e os Parques Regionais Naturais do Tua e do Baixo Sabor, este último em fase de constituição, e ainda os Sítios de Interesse Comunitário (SIC), de Morais e do Romeu, que integram a Rede Natura 2000. A Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e o Instituto Politécnico de Bragança asseguram a transição deste sistema para uma economia mais criativa de base territorial.

Em terceiro lugar, o geossistema territorial dos Terroirs do Alto Douro vinhateiro. Em 2001, a Unesco classifica como Património da Humanidade, na categoria paisagem cultural, parte de toda a região demarcada, cerca de vinte e quatro mil hectares. Como paisagem cultural esta região beneficia e assiste ao crescimento da procura turística. O tráfego fluvial de barcos de cruzeiro intensificou-se, as inúmeras quintas abriram portas às visitas turísticas e comboio histórico voltou à linha do Douro para realizar passeios, as aldeias vinhateiras são uma explosão de beleza natural, vistas panorâmicas, artes da paisagem, monumentos classificados, arquitetura tradicional duriense. A região está em constante movimento, desde o aparecimento de novas unidades hoteleiras à recuperação e adaptação de antigas propriedades em hotéis rurais ou casas de turismo em espaço rural. Esperamos todos que esta intensificação da monocultura turística seja devidamente acompanhada. A CIM Douro, com 19 municípios e cerca de 200 mil habitantes tem essa obrigação perante os seus munícipes.

Em quarto lugar, o geossistema territorial de Dão Lafões e Bairrada, duas unidades de paisagem ligadas por uma terceira, os montes ocidentais da Beira Alta, dois subsistemas vitivinícolas denominados e de apelações de prestígio, sede das castas touriga e baga, situadas no território que liga a Beira Alta à Beira Litoral e na interface entre as CIM Viseu Dão Lafões, Região de Aveiro e Região de Coimbra. Os vinhos, o leitão, a floresta, o termalismo, o sistema montanhoso, mas, também, muitas pequenas e médias empresas, permitem-nos antecipar uma arquitetura de geossistemas e uma economia criativa de grande futuro. Duas universidades, Aveiro e Coimbra, e o Politécnico de Viseu asseguram uma transição criativa a esta sub-região.

Em quinto lugar, o geossistema territorial da Cova da Beira, Castelo Branco, Penamacor e Idanha. Este geossistema situa-se na Beira Interior e a sua arquitetura territorial articula quatro unidades de paisagem: a Cova da Beira, Penha Garcia e Serra da Malcata, a Campina de Idanha e o eixo Castelo Branco, Penamacor e Idanha. Os concelhos deste geossistema pertencem às CIM das Beiras e Serra da Estrela e da Beira Baixa. Estamos a falar de uma terra de granitos e de arquitetura tradicional, com várias aldeias históricas muito conhecidas, vistas panorâmicas espantosas, um conjunto notável de elementos patrimoniais e uma gama extensa de denominações de origem e indicações geográficas. A universidade da Beira Interior e o Politécnico de Castelo Branco asseguram uma transição criativa a esta sub-região.

Em sexto lugar, o geossistema territorial da Serra da Estrela. Este geossistema faz parte do sistema montanhoso Montejunto-Estrela, integra o parque natural da serra da Estrela, uma das maiores áreas protegidas de Portugal, e a Comunidade Intermunicipal das Beiras e Serra da Estrela. O geossistema da serra da Estrela integra o anel urbano formado pelos concelhos da Guarda, Manteigas, Gouveia, Seia, Celorico da Beira e Covilhã. A beleza natural e paisagística justificaria por si só a delimitação deste geossistema. Para lá do património geológico do geoparque da Estrela (124 geossítios classificados) podemos apreciar a beleza natural e paisagística das penhas, covões, cântaros, vales, mirantes e miradouros, lagoas, nascentes de quatro rios, praias fluviais, pistas de ski, povoações ancestrais, a riqueza florística e faunística. A antropologia histórica, o turismo de natureza, a hidrologia, a bioeconomia do parque natural são razões de sobra para privilegiar esta sub-região, sempre com conta, peso e medida. A Universidade da Beira Interior e o Politécnico da Guarda reinventam e asseguram as hiperligações entre economia produtiva e economia criativa a esta sub-região.

Em sétimo lugar, o geossistema territorial do Pinhal Interior. A escolha deste geossistema, monótono e homogêneo de monocultura florestal, situado no centro geodésico do país, visa impedir que tenha lugar uma nova tragédia dos comuns como aquela que ocorreu com os grandes incêndios de 2017. De resto, na sequência dessa tragédia foi criado o Programa de Revitalização do Pinhal Interior (PRPI) pela Resolução do Conselho de Ministros, RCM nº1/2018 de 3 de janeiro e em 2020 o Programa de Transformação da Paisagem (PTP) pela RCM nº49/2020 de 24 de junho. Estes dois instrumentos governativos tinham por objetivo principal dar cumprimento à estratégia nacional das florestas 2030, à estratégia nacional de conservação da natureza e biodiversidade 2030 e ao plano nacional de gestão integrada de fogos florestais e, agora, também, às orientações do PRR 2027 e ao PT 2030. É em nome de um cumprimento efetivo destes programas que se justifica uma nova arquitetura territorial para o Pinhal Interior. Os vinte concelhos desta sub-região ainda esperam que a aliança entre os municípios, as CIM envolvidas e os Institutos Politécnicos (Santarém, Portalegre e Castelo Branco) possam evitar uma nova tragédia dos comuns.

Em oitavo lugar, o geossistema territorial do parque da serra de S. Mamede. O parque natural da serra de S. Mamede foi criado em 1989, tem 56 mil hectares e abrange quatro concelhos – Marvão, Castelo de Vide, Portalegre e Arronches – com prolongamento para os concelhos do Crato e de Niza. Trata-se de uma sub-região de transição entre as Beiras e a peneplanície alentejana e a sua maior particularidade é, justamente, a diferenciação das suas altitudes, com a serra a norte (1000m), a plataforma de Portalegre ao centro (400 a 500m) e a peneplanície alentejana ao sul suave e ondulada (300 a 400m). Esta diferenciação geomorfológica confere-lhe uma grande diversidade biológica e uma forte identidade como parque natural e sítio classificado da rede natura 2000. De resto, esta mesma diferenciação está espelhada na forma como a economia rural está estratificada. Nas encostas da serra viradas a norte, mais frias, predominam os soutos e castinçais, o pinheiro-bravo e o carvalho negral, isto é, a pequena e a média propriedade, nas encostas viradas a sul, mais quentes, prevalecem os montados de sobro e azinho, as pastagens e a criação de gado, isto é, a média e grande propriedade. Esta mesma diversidade biológica reflete-se no número considerável de denominações de origem e indicações geográficas aqui existentes. Do mesmo modo, a sub-região é muito rica em património cultural, das gravuras rupestres às ruínas romanas (Ammaia), dos monumentos militares à arquitetura civil e religiosa de vilas medievais com marcada personalidade como é o caso de Marvão e Castelo de Vide. O número de habitantes vivendo no parque natural é considerável (cerca de 30 mil) o que confere ao parque natural um estatuto especial tendo em vista, por exemplo, o desenvolvimento de uma ação-piloto no quadro de um investimento territorial integrado (ITI). Em complemento do parque natural, e como opção de política regional, a região do Alto Alentejo tem ainda à sua disposição as unidades de paisagem da peneplanície alentejana, as colinas de Elvas e as várzeas do Caia e Juromenha.

Em nono lugar, o geossistema territorial da albufeira de Alqueva e suas envolventes. O Empreendimento de Alqueva assenta no conceito de fins múltiplos e na gestão integrada da sua reserva estratégica de água e é composto pelas seguintes infraestruturas: barragem do Alqueva, central hidroelétrica do Alqueva, barragem do Pedrógão, central mini-hídrica de Pedrógão. O Empreendimento de Fins Múltiplos Alqueva (EFMA) ocupa parte dos concelhos de Portel, Vidigueira, Moura, Reguengos de Monsaraz, Évora, Mourão e Alandroal. A reserva estratégica de água tem vários destinos: o abastecimento público, com o reforço a 5 barragens que abastecem cerca de 200 000 habitantes, para a agricultura, com uma área equipada de regadio, atualmente, de cerca de 130 000 hectares e uma área de expansão de mais 40 000 hectares, para a indústria, para produção de energia limpa e para o turismo. A partir de Alqueva, interligam-se barragens e reservatórios garantindo a disponibilidade de água, mesmo em períodos de seca extrema, a uma área aproximada de 10 000 km2, divididos pelos distritos de Beja, Évora, Portalegre e Setúbal, abrangendo um total de 20 concelhos.

Do ponto de vista da sua gestão estratégica, o EFMA tem em mão cinco grandes desafios, todos eles em curso. A transformação da paisagem (I), que envolve uma série de medidas de mitigação, adaptação e compensação. Um projeto de investimento territorialmente integrado (II) criando as condições para um acréscimo efetivo do produto interno bruto regional. A sustentabilidade de todo o projeto (III) e a sua boa governança multiníveis nos planos regional, nacional e transfronteiriço. O desenvolvimento da Marca Alqueva (IV) como espaço de referência de qualidade de produtos e serviços, de inovação e tecnologia, de criação de emprego qualificado e atração de capital humano. A valorização do património cultural, do seu carácter, sinais distintivos e identidade (V). A EDIA, a Universidade de Évora, o Instituto Politécnico de Beja e as CIM do Alentejo podem assegurar as hiperligações entre economia produtiva e economia criativa que são indispensáveis à realização destes cinco grandes objetivos.

Em décimo lugar, o geossistema territorial do Barrocal Serra algarvio. Na atualidade, a região do Algarve vive uma situação paradoxal, uma espécie de plano inclinado em direção ao mar. A predominância da monocultura intensiva do turismo faz com que as unidades de paisagem da ria formosa e do litoral não tenham um contraponto nas unidades de paisagem do barrocal e da serra onde dominava o rural tradicional algarvio de policultura. As disfunções regionais são manifestas, a começar no abandono da policultura tradicional e no despovoamento e a terminar na degradação do património natural e cultural e no uso insustentável dos recursos hídricos. Claramente, estas quatro unidades de paisagem precisam de ser reequilibradas rapidamente, sob pena de graves assimetrias a curto e médio prazo na gestão dos recursos regionais. Esta é razão de ser de uma nova arquitetura do geossistema do barrocal serra algarvio e de uma economia criativa de base territorial que sejam capazes de corrigir estas disfunções graves já com algumas décadas. Para, de algum modo, ilustrar esta preocupação, o governo português publicou a RCM nº 8/2024 de 5 de janeiro onde, em sede de reprogramação do programa específico da PAC para Portugal (PEPAC), se compromete a reforçar o 2º pilar da PAC (desenvolvimento rural) através de uma transferência do primeiro para o segundo pilar, em especial, para as zonas rurais mais desfavorecidas. Mera coincidência, talvez, mas ilustrativo. De resto, a CIM do Algarve, a CCDR.IP, a Universidade do Algarve e as associações setoriais podem assegurar as hiperligações que são absolutamente necessárias entre a economia produtiva e a economia criativa de base territorial.

Nota Final

A terminar, um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento da agricultura da 2ª ruralidade reside na inibição ou no receio que sentirmos em enfrentar as alternativas ao modelo dominante de agricultura, em ir à redescoberta, sem quaisquer medos, da nossa exclusão e contra racionalidade. Se formos capazes de assumir a liberdade desta contra racionalidade, iremos, também, redescobrir muitos sistemas territoriais em espaços geográficos que já considerávamos não-lugares, pois mesmo nos espaços mais críticos da baixa densidade há uma razão orgânica e virtuosa e um génio dos lugares que podem irromper a qualquer momento, se forem devidamente observados e provocados. Se assumirmos essa liberdade, os geossistemas serão laboratórios ou incubadoras de construção de novas multiterritorialidades, onde a pouco e pouco se recupera o capital natural e o capital social e se desperta a inteligência territorial adormecida dos lugares.

 

Artigo de António Covas . Professor Catedrático da Universidade do Algarve

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