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Para se compreender Zaha Hadid, é preciso antes entender o estado da arquitetura em 1980, numa altura em que os modelos modernistas que se instalaram definitivamente na segunda metade do século XX eram contestados por uma significativa parte da crítica. Muitos diziam, nessa altura, que o desenho era uma matéria quase decorativa e semiótica, e tudo o que interessava era como o edifício se relacionava com a envolvente, de preferência educadamente e timidamente.
Em contraste, a arquitetura de Zaha Hadid começa a ganhar o interesse da vasta comunidade de arquitetos, com propostas destemidas e ousadas, projetos de puro talento, e em rutura com uma profissão que parecia assustada de si mesmo e da modernidade.
Controversa, as opiniões sobre a importância do seu trabalho dividem-se. Mas foi certamente uma das mais importantes influencias na arquitetura dos últimos 30 anos, e não apenas como mulher. E mudou a dinâmica de poder de uma profissão que precisava desesperadamente de evoluir. Não apenas a profissão, mas a arquitetura também.
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A convite do Arq. Hélder Nascimento, que muito me honrou, escolho falar desta arquiteta. Em primeiro lugar porque adoro o seu trabalho, mas também porque permaneceu honesta para com as suas próprias convicções, apesar de contar com uma critica muito pouco construtiva, que descrevia os seus projetos como não passiveis de serem construídos.
Num mundo onde quem investia em criações experimentais arriscava criticas destrutivas, Zaha Hadid aparece a contestar a “função acima da arte”. Para ela, o edifício deve ser um objeto significante, uma junção entre o programa arquitetónico e uma pintura ou escultura. Defende que os critérios estéticos são uma conquista funcional, e que como Óscar Niemeyer “a arquitetura deve ser primeiramente bela”. Uma luta que travou toda a sua vida e que opôs progresso e evolução ao tradicionalismo.
Gosto muito da arquiteta, mas ainda mais da sua ousadia, de ter acreditado que o significado e poder na arquitetura encontra-se na forma, mais do que o seu papel social ou humanitário. Não se trata de arquitetura, mas de salvar o mundo através da arquitetura. Ou morrer a tentar.
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Nascida em Bagdade em 1950, Zaha Hadid estuda em Londres, na Architectural Association, onde tem como professor o então muito reputado Rem Koolhass, do qual os portugueses conhecem pela “casa da musica” do Porto.
A arquiteta começa assim o seu percurso profissional, mas em 1979 inicia a sua própria prática profissional, investindo nas ideias que a tornaram mais tarde uma referencia incontornável da arquitetura.
Os primeiros anos de profissão trazem muitos projetos conceptuais que nunca foram construídos. Não foi fácil a uma mulher fazer vingar as suas convicções num mundo da construção dominado por homens, onde todo o reconhecimento até então estava reservado a um pedestal exclusivamente masculino.
Vencedora de inúmeros concursos internacionais, ficam assim por concretizar projetos como o “the peak club de Hong Kong” com que inicia a sua carreira, mas também o “Arte e Media Center de Dusseldorf” ou o “Ópera da Baía de Cardiff”.
O reconhecimento viria mais tarde, tendo sido a primeira mulher em 167 anos de história a vencer a “royal gold medal for architecture”, e dois “Stirling awards”, entre outros. Em 2004 torna-se também a primeira mulher a receber aquele que é conhecido como o “óscar” da arquitetura – o “prémio Pritzker”- como reconhecimento da sua obra.
Como mulher e árabe, foi sempre descrita por alguma critica de forma exótica, enfatizando as suas roupas, as suas maneiras, algo inconcebível quando comparada por um Eisenman, ou outros arquitetos. Resistiu sempre à ideia de ser considerada uma mulher na arquitetura, mas antes apenas uma arquiteta. E pareceu sempre indiferente às criticas até à data da sua morte, em 2016.
Para mim, ela é um dos maiores talentos da arquitetura, uma visão original e livre que trouxe outros caminhos para a minha profissão, que mudou a maneira como pensamos e vemos o espaço. Os seus projetos mostram-nos que não há limites para a imaginação, mesmo quando ela tem de obedecer a aspetos funcionais. Através deles encontro uma perspetiva diferente para a arquitetura em relação ao que me foi ensinado, onde o objeto arquitetónico ganha maior significado e expressão, maior beleza e fluidez. Não é assim afinal, este mundo dinâmico em que hoje vivemos?
Artigo de Opinião de Bruno Martins | Arquiteto